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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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DANUZA LEÃO

Pé no passado

Para quem começou a vida muito cedo e continua curiosa e interessada nos caminhos do mundo, as coisas às vezes ficam complicadas. É como ter um pé fincado no presente mas também um outro lá atrás, no passado; viver assim é, no mínimo, perturbador.
Esse pé no passado é nossa memória, que não nos deixa esquecer como eram os nossos pais, como eles viviam, o comportamento que esperavam dos filhos -e das filhas, sobretudo. Todo mundo finge que acha tudo muito natural, mas os costumes estão mudando rápido, rápido demais, e a gente se assusta.
O pé no passado lembra de coisas que não dá para acreditar: do tempo em que as desquitadas eram malvistas; do amigo que se matou porque descobriram que ele era gay; das duas mocinhas -Carmem e Vivian- que frequentavam a mesma praia e eram famosas por serem as únicas não-virgens do pedaço; da grande ousadia que era uma moça trabalhar, quando o seu destino já estava traçado: estudar francês e piano e casar.
Mas faz tanto tempo assim? Ok, foi no século passado, mas ela ainda se lembra bem. Lembra até mesmo que havia médicos especialistas em reconstituir a virgindade para que as meninas pudessem se casar vestidas de branco -dá para acreditar?
As moças eram proibidas de entrar no carro dos rapazes. É claro que elas entravam, mas, quando passavam pelos pontos mais estratégicos, se abaixavam para não serem vistas, e eu juro que isso é verdade. Ju-ro.
As intimidades com os namorados eram levíssimas, e ficar de mãos dadas no cinema era praticamente um compromisso. O primeiro beijo na boca era contado com emoção à amiga mais íntima, e detalhe: era um beijo casto. Alguns garotos tentavam passar a mão nos seios das meninas (sempre no cinema, sessão das 8h), o que era considerado, por elas mesmas, grave. Grave, não: gravíssimo.
Hoje, quando vê as campanhas na televisão incentivando o uso da camisinha no Carnaval, fica grilada e morre de medo de ter virado careta -logo ela, quem diria.
Pois não foi justamente ela que, empunhando a bandeira da liberação feminina, usou a saia mais curta, a camiseta em cima da pele e foi para a cama com quem quis, na hora que achou melhor? E agora vai dar uma de conservadora e dizer que o mundo está perdido, que história é essa? Não, não é o mundo que está perdido, é ela que está perdida.
Mas lembra e tem certeza: era diferente. Beber, fumar, experimentar maconha, dormir com um homem, chegar em casa com o sol nascendo era um posicionamento diante da vida. Não dá para negar que era divertido, mas era um posicionamento -e sempre muito intenso.
Continua lembrando e pensa que as mesmas coisas são feitas hoje -o sexo, sobretudo-, mas de maneira banal. É tão simples levar o namorado para dormir no quarto sob as bênçãos da família, que não pode ter muita graça. E alguma coisa fácil tem graça?
Convenhamos: existe alguma coisa menos afrodisíaca do que "usa camisinha, baby, usa camisinha"?
Naqueles tempos, ir para a cama com um homem era importante, e havia sempre uma razão forte -mesmo imaginada- para que isso acontecesse; às vezes se fazia uma certa confusão entre atração física e ideologia, mas era assim o mundo em que se vivia.
Foram doces erros da juventude, e todos perfeitamente perdoáveis; afinal, quando se é muito jovem, não se pode saber tudo -e ainda bem.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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