São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2004

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AIDS

Programa do Ministério da Saúde terá como alvos os serviços de saúde, os professores, além dos próprios homossexuais

Travestis têm primeira campanha dirigida

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

As travestis formam o grupo mais excluído e discriminado da sociedade. Só aparecem à noite, em locais pouco iluminados, onde podem encontrar clientes e escapar do preconceito das pessoas.
Neste ano, pela primeira vez no Brasil e "no mundo", o Programa Nacional de DST-Aids está lançando uma campanha destinada a "elas" (chamá-las no feminino, pelos nomes que adotaram como travestis, é a primeira atitude de respeito que exigem).
Para criar a campanha, o programa reuniu 27 lideranças dos principais grupos travestis do país. Os encontros ocorreram em 2003. Seis meses depois, quando o cartaz saía da gráfica, três das 27 travestis já tinham morrido.
Charla, 42, que fundou e dirigia o grupo Charlath's, morreu em 11 de dezembro, vítima da Aids. Seu companheiro por 18 anos, João Carlos Mendes de Menezes, 42, continua dirigindo a ONG que reúne semanalmente 15 "moças" para o "chá das travestis". A sede é sua própria casa, em Cidade Nova, região central do Rio.
Janaína Dutra, 43, que presidia a Associação Nacional de Transgêneros (Antra), morreu em 8 de fevereiro, vítima de câncer no pulmão. Sara Brightman, 35, que dirigia o grupo das travestis de Cuiabá, morreu há dois meses, quando fazia uma aplicação "clandestina" de silicone".

"Dignidade na pista"
O programa de DST/Aids do Ministério da Saúde já financiou 47 projetos dirigidos às travestis, dos quais 19 estão em andamento. Tratam de prevenção e pregam o conceito de identidade e inclusão social. É um desafio enorme para um grupo que só aparece em Carnavais e nas páginas de polícia dos jornais. Mais de 95% das travestis vivem da prostituição. "É a população que mais se esconde, nem sabemos quantas somos", diz Marcela Prado, 42, do grupo Dignidade, de Curitiba, e que preside a Antra, depois de Janaína.
As poucas que conseguem trabalho estão em salão de cabeleireiros, mas raramente uma empresa contrata um travesti.
Janaína Lima, 32, coordenadora de travestis do Grupo de Ação pela Cidadania Homossexual, de Campinas, criou o projeto "Cidadania na Pista". "Queremos o respeito na rua. E queremos que elas tenham chance de escolher o que fazer", diz Janaína. "Não estamos querendo tirar ninguém da rua, estamos trazendo as meninas para um convívio social e de respeito que elas perderam."
Imaginar alguém que durante o dia se veste como homem e à noite sai como travesti é um fato inconcebível para elas. "Não há travesti meio-expediente. Travesti é uma identidade, não uma fantasia", diz Janaína Lima.
Para entender esse universo, a Coordenação Nacional de DST/ Aids trabalhou durante seis meses com as lideranças. O resultado foram três trabalhos: um para os professores, outro para os serviços de saúde e um terceiro para elas próprias.
"A violência contra elas começa em casa", diz Liliana Pitaluga, assessora técnica do programa nacional. "A família é a primeira a nos espancar, a nos ignorar e a nos jogar na rua", diz Marcela Prado. "Depois é a escola, onde ninguém nos respeita. Há uma grande evasão de travestis das escolas, nem os outros alunos, nem os professores nos aceitam. Depois é o mercado de trabalho, que não nos aceita. Há muitos travestis com curso superior e que não conseguem emprego. Sobram os salões de beleza e a prostituição."

Banheiro feminino
Os cartazes produzidos pelo ministério e as travestis trazem as fotos de 27 delas e uma frase chave: "Travesti e respeito: já está na hora de os dois serem vistos juntos. Em casa. Na boate. Na escola. No trabalho. Na vida."
Trata-se de uma reivindicação muito longe de ser atendida. Ainda há confusão entre os termos e a travesti é vista com discriminação e gozação. "Por causa dos preconceitos, as travestis são hoje o grupo mais vulnerável, em todos os sentidos", diz Pitaluga. "A maioria delas não procura os serviços de saúde para orientação e prevenção. Nos hospitais, elas só entram pelo pronto-socorro, quando alguma coisa grave acontece. E os profissionais de saúde não estão preparados para recebê-las."
É comum, nas salas de espera dos ambulatórios, por exemplo, a travesti ser chamada pelo nome de batismo. "Sebastião de Souza", diz a recepcionista. E levanto eu, travestida de mulher", diz Liza Minelli, do Grupo Esperança, de Curitiba. "Queremos ser chamadas pelos nomes de travestis. Não queremos ser tratadas como doentes nem como mulheres."
A cartilha e a campanha do Ministério da Saúde lembra que as travestis têm o direito de usar o banheiro feminino.


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