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VERA MALAGUTI
Para historiadora, paranóia da segurança e controle social são heranças da sociedade escravocrata
Medo avaliza abuso policial e gera "elite exterminadora"
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL
No Brasil, exalta-se o talento negro na passarela do samba. Já fora
da avenida, qualquer atitude de
um negro parece ser considerada
suspeita, quase ameaçadora, a
ponto de causar o assassinato do
dentista Flávio Ferreira Sant'Ana,
28, morto por policiais militares
em São Paulo, no último dia 3, depois de supostamente reconhecido pela vítima de um assalto. Ou a
expulsão de um shopping, no Rio
de Janeiro, de Luciano Ferreira da
Silva, 18, afilhado do compositor
Caetano Veloso, no dia 14.
A partir da análise de episódios
como esses e como os arrastões
nas praias da zona sul do Rio, em
1993, a historiadora Vera Malaguti, 49, pesquisadora da Universidade Candido Mendes e secretária-geral do Instituto Carioca de
Criminologia, fez um estudo histórico sobre as raízes da cultura
do medo nas cidades brasileiras.
O resultado está no livro "O Medo na Cidade do Rio de Janeiro
-Dois Tempos de uma História"
(ed. Revan), que analisa, desde os
tempos da escravidão, a prática
social alimentada pelas elites de
delimitar o inimigo como o outro
-no caso brasileiro, o negro e o
pobre- e clamar por estratégias
duras de controle e punição.
A estética da escravidão herdada pela sociedade contemporânea, segundo a pesquisadora, é
muito presente na atual "paranóia da segurança" vivida no país.
"Se antes a fantasia era o quilombo, hoje o medo é da periferia
e do morro", analisa. "As elites
têm medo, mas é a população da
periferia e da favela que vive o terror e a barbárie no dia-a-dia."
Folha - Como a sra. avalia a ameaça, em um shopping, ao afilhado de
Caetano Veloso e a morte do dentista Flávio Ferreira Sant'Ana?
Vera Malaguti - Esses são dois
dos milhares de casos que acontecem. No meu livro anterior, "Difíceis Ganhos Fáceis - Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro",
tratei da questão da "atitude suspeita", que é uma abordagem policial comum, em que a população
negra em geral é sempre suspeita.
Fiz um estudo de tipologia de
processos de adolescentes envolvidos em atos infracionais relativos a drogas e separei todos em
que se falava de atitude suspeita.
Jovens negros e pobres apareciam
detidos em "atitude suspeita" nas
pedras do Arpoador, num táxi no
Flamengo, jogando bola na praia.
Ou seja, tudo aquilo que não é atitude suspeita vira atitude suspeita
por uma questão histórica ontológica. O sujeito é suspeito por si
mesmo. Por ser negro e pobre.
Folha - Como a sra. relaciona esse
fenômeno com a escravidão?
Malaguti - O que ficou para nós
hoje é a hierarquia estética da escravidão, que é muito consagrada
e foi se acentuando com o neoliberalismo, que quebrou pontes
como a escola pública para todos
e aumentou a apartação.
Essa estrutura de periferia do
neoliberalismo desvaloriza também a categoria do trabalhador.
Os lugares vão ficando muito
mais hierarquizados. E o medo
ajuda a manter essa ordem de desigualdade sem questioná-la.
Folha - Casos como a morte do
dentista e a ameaça ao afilhado de
Caetano ocorrem por conta dessa
herança?
Malaguti - Com certeza. No caso
do dentista, se ele não fosse inocente, mas suspeito do assalto, isso bastaria para justificar a abordagem policial feita na ocasião.
Estatisticamente, ele seria um
morto ignorado, como acontece
no Rio quando a polícia sobe os
morros, mata três ou quatro e diz
que eram todos traficantes. De
qualquer forma, isso não justifica
a "pena de morte" aplicada no local, ou seja, a abordagem de atirar
para matar antes de mais nada.
Essa abordagem é uma forma
de homogeneizar toda a população favelada e negra. No caso do
dentista, não se trata de culpar só
a polícia. A vítima do assalto havia
reconhecido o rapaz como o bandido. Mas, e se fosse realmente o
assaltante? Estaria certo matá-lo?
No caso do shopping, o que
houve de errado na abordagem
daquele segurança foi o fato de o
garoto ter uma aba de poder que
ele absolutamente não imaginava.
Eu tenho pena é
do segurança, que
faz isso todo dia,
foi treinado para
afastar a população pobre do
shopping e cometeu um "engano".
Essa é a barbárie
cotidiana que normalmente vitimiza quem não tem
poder para questionar a ordem.
O que se percebe
é que, na saída do
regime militar, a
sociedade era
muito mais libertária. Hoje somos
muito mais punitivos. Naquela
época, todos estávamos convencidos de que esse tipo de comportamento era arbítrio. Hoje todos estão convencidos de que isso é necessário.
Esse é o grande paradoxo da democracia e do neoliberalismo à
brasileira. Esses discursos do medo nos transformaram numa elite
muito mais exterminadora. Na
saída do regime militar, a gente
questionava o arbítrio policial e,
hoje em dia, ele é aplaudido.
Folha - Em que momento da história do Brasil acontece o encontro
entre repressão e segregação?
Malaguti - No início do século
19, com o direito penal da escravidão. Justamente nessa conjuntura
de 1830, logo após a Independência. Nessa época, o país deixou de
ser regido pelas ordenações e, em
1824, tivemos a primeira Constituição. Depois, em 1830, tivemos
o primeiro Código Penal.
E é isso o que instaura o que eu
chamo de "ciladania" -conceito
de cidadania que entra no Brasil e,
ao mesmo tempo, desqualifica todo mundo que não é branco, do
sexo masculino e proprietário.
Quando o liberalismo e seus diplomas legais entram no Brasil, você
tem o tempo todo a
desqualificação jurídica do escravo, que
aparece como "coisa" perante o ordenamento político da
vida privada e como
"pessoa" apenas perante o direito penal.
E o neoliberalismo
comporta esse legado escravocrata porque o tempo todo
nós tivemos uma
subcidadania. E isso
quer dizer que, na
verdade, nunca houve cidadania, porque
este é um conceito
que está naquela categoria na qual ou todo mundo é ou ninguém é. E esse
conceito já entra no Brasil com
ambigüidade.
Folha - Como essa ambigüidade
se traduz hoje?
Malaguti - Toda a nossa visão
perante a lei e a legalidade está impregnada dessa herança ambígua
perante o conceito de cidadania.
E, com o neoliberalismo, o que
houve foi a substituição do estado
previdenciário pelo estado penal.
Loïc Wacquant, um sociólogo
francês que trabalha em Berkeley
[autor do prefácio do novo livro
de Malaguti], fez um estudo nos
EUA que apontou como a população desassistida pelo governo
Reagan era deslocada para o atendimento penal.
O mesmo acontece no Brasil. As
taxas de encarceramento por aqui
subiram vertiginosamente com o
neoliberalismo. São Paulo é um
caso emblemático, e hoje tem
mais de 100 mil presos. O mais
impressionante é que as pessoas
estão convencidas de que a pena é
reguladora de conflitos sociais.
Durante a Revolta dos Malês,
ninguém via os negros protagonistas daquela ação como heróis
libertários, mas como bandidos.
Eles foram criminalizados e seus
advogados foram hostilizados
porque questionaram sem querer
a ordem escravocrata.
Folha - Em seu livro, a sra. aponta
a Revolta dos Malês como um primeiro grande exemplo de disseminação do medo e da demonização
dos negros e dos pobres. Quando se
inicia no Brasil a prática do uso da
violência e do discurso do medo como meio de controle social?
Malaguti - O medo do outro
existe desde o Brasil Colônia, que
exterminou os índios e os escravos. Mas, com a Independência
do Brasil, em 1822, o país foi sacudido por desejos de nação. A idéia
de nação -a grande questão brasileira do século 19- está ligada à
idéia de um território e de um povo. Os ecos da Revolução Francesa, da cidadania e da República
sacudiram o Brasil. Desde os Farrapos no Rio Grande do Sul até a
Cabanagem no Pará, passando
pela Revolta dos Malês, na Bahia.
Esse último caso é muito interessante porque, como diz João
José Reis [historiador e professor
da Universidade Federal da Bahia,
especialista em escravidão], que
tem um lindíssimo livro sobre o
tema, eles representavam o outro
porque eram negros, muçulmanos e liam e escreviam enquanto
as elites eram analfabetas.
Foi uma revolta dizimada rapidamente, mas que impregnou na
sociedade brasileira o medo da
explosão, da insurreição. E isso
perdurou durante muito tempo.
A onda de pânico foi enorme, os
negros eram supliciados em público como resposta ao clamor
das elites por punição.
Folha - Essas ondas de pânico estão ligadas à ameaça às elites?
Malaguti - Há um trecho de "A
Vida dos Escravos no Rio de Janeiro de 1808 a 1850", livro da historiadora americana Mary Karasch, em que um
viajante no Brasil
diz ter ficado abalado ao ver "escravos agonizantes
nas lixeiras".
Vou usar uma
expressão comum
no Rio, que é a vala. Aqui a gente
convive com corpos de jovens negros jogados na
vala, na caçamba.
E isso é naturalizado. Só quando
há um engano ou
quando o morto é
alguém da classe
média a polícia é
questionada.
Folha - O medo
seria, então, um
disciplinador social para as elites?
Malaguti - O medo é incentivado, ele interessa. Para se manter
uma ordem muito injusta, só se
disciplina por meio do terror. Mas
quem é que está no terror? As elites têm medo, mas é a população
da periferia, da favela que vive esse terror e essa barbárie no dia-a-dia. É a maneira de disciplinar no
neoliberalismo. Não há emprego,
não há políticas sociais, de saúde,
de educação e de cultura. E aí entra o terror como parte do arsenal
de estratégias do neoliberalismo.
Nos momentos eleitorais, muita
gente cai por conta disso. Da direita à esquerda punitiva, ninguém tem coragem de enfrentar
essa questão. Há diferença entre
direita e esquerda quanto a posições econômicas, mas, na parte
penal, quase todo mundo fala a
mesma coisa. Quem tentar esvaziar o medo é criminalizado.
Folha - Qual é a conseqüência
prática desses discursos duros sobre violência e segurança?
Malaguti - É a punição além do
crime. É o controle social. Veja o
caso das medidas de segurança no
fim do século 19. Por
exemplo, a vadiagem: o sujeito não
cometeu nenhum
crime, mas é preso
antes disso. Como o
caso da tal "atitude
suspeita". Ou, como
no caso do dentista,
você mata antes de
descobrir se o sujeito
é ou não é criminoso.
Isso é também herança escravagista do
século 19, quando
havia o controle da
movimentação dos
negros, que só podiam se deslocar com
um documento assinado pelo senhor, no
qual estivesse escrito
para onde iria, com
quem falaria e quando voltaria.
A população jovem de periferia
vive a permanência disso na forma como são abordados pela polícia. Um grupo de meninos da
periferia se deslocando pela cidade leva dura da polícia toda hora.
Folha - No Brasil, a polícia foi criada com a lógica da punição racial?
Malaguti - Quando a polícia brasileira foi criada, sua função primordial era controlar escravos,
reprimir quilombos e ajuntamentos e açoitar escravos em locais
públicos. No primeiro presídio,
95% dos presos eram escravos.
Folha - Essa penalização racial e
de classe está refletida, portanto,
no comportamento da polícia?
Malaguti - De uma certa forma, a
polícia é uma vítima histórica desse pensamento penal porque é induzida ao erro por uma pressão
feita pelo que chamo de "discursos que matam": ondas contra a
criminalidade, que brutalizam a
juventude e a polícia, que é jogada
a um tipo de ação violenta por
uma opinião pública que está
sempre clamando e achando que,
quanto mais se prende, melhor.
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