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CRIME NO PARQUE
Direção cadastrou bichos, refez contratos e criou funções; pacote barrou desvios, e alguém decidiu se vingar
Para zôo e polícia, ajustes detonaram mortes
João Wainer/Folha Imagem
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Vista do Zoológico de São Paulo, que ocupa 824.529 m2 na zona sul; polícia vê dez suspeitos entre 412 trabalhadores |
SÍLVIA CORRÊA
FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL
A implantação de controles que
passaram a dificultar de pequenos
desvios a grandes fraudes no Zoológico de São Paulo é a explicação
mais provável para a motivação
do envenenamento que causou a
morte de pelo menos 73 animais
da instituição desde 24 de janeiro.
Com interesses contrariados
-e lucros reduzidos-, algumas
pessoas puseram em prática um
cuidadoso plano de vingança. É
nessa direção que se concentram
quase todos os indícios coletados
até agora pela Polícia Civil paulista e as apostas dos próprios membros do comando da fundação.
A direção do zôo começou a ser
alterada em fevereiro de 2001,
processo que culminou com a
troca do diretor-presidente da
instituição em julho daquele ano.
De lá para cá, um conjunto de cinco medidas foi gradualmente
adotado para reformular gastos,
criar controles e barrar sucessivas
irregularidades na fundação. As
cinco principais ações foram:
contagem e cadastro dos bichos, com a adoção de anilhas fechadas, tatuagens ou implantação
de microchips em todo o acervo;
impedimento de entrada de
animais apreendidos sem autorização;
proibição de doação de excedentes a criadouros comerciais e
necessidade de aprovação de todas as doações por um conselho;
revisão de contratos de fornecimento de produtos e serviços,
com controle de estoque;
implantação do PAP (Programa de Aprimoramento Profissional), que abriu as portas do zôo a
dezenas de novos profissionais a
cada ano.
Listadas assim, as ações parecem simples. Mas o fato é que, antes delas, é quase inimaginável como era a vida zoológico adentro,
inclusive durante a gestão Mário
Covas-Geraldo Alckmin (1995-2002), segundo relatos feitos à Folha por membros do próprio governo tucano. Naquela época, a
fundação era vinculada à Secretaria Estadual de Esportes e Turismo, cujo então titular, Marcos Arbaitman, mantinha um assessor
dentro dos limites do parque.
Setor extra: o favelão
A falta de contagem e de cadastro dos animais criou, ao longo
dos anos, o que funcionários do
alto escalão do parque definiram
à reportagem como "favelão".
Eles se referem ao setor extra,
nome dado à área que abriga todos os animais que não estão no
percurso de exposição (4 km) por
motivos diversos -excesso de espécies, doença, reprodução etc.-
e que, coincidência ou não, registrou a maior parte das mortes por
envenenamento neste ano.
Não havia no local nenhum
controle de quais eram nem de
quantos eram os bichos lá estocados -o que significa que não havia regras de reprodução nem registros de entrada e de saída.
Na prática, o descontrole servia
a interesses tão definidos quanto
escusos. Para alguns, o zôo era
uma grande incubadora -eles lá
criavam, alimentavam e reproduziam suas espécies, à custa basicamente do dinheiro público, vendendo depois os bichos (em geral,
aves), em proveito próprio.
Outros usavam o parque para
"esquentar" animais. Ou seja:
capturados clandestinamente,
muitas vezes sob encomenda, os
bichos eram introduzidos irregularmente no estoque do zôo e, de
lá, doados a criadores -inclusive
os classificados como comerciais.
Na doação, porém, o crime inicial -roubo, caça clandestina,
tráfico ou qualquer outro- sumia, pois na ficha do animal passava a figurar uma origem bem
conhecida: o Zoológico de SP.
Em 2001, a primeira contagem
feita no acervo pela atual gestão
do parque indicou que havia
4.500 bichos no zôo, 30% deles
sem origem declarada. Do total,
2.000 estavam no setor extra
-44% do acervo-, mas a área
guardava mais da metade dos
clandestinos do parque. Em 31 de
dezembro de 2003, o acervo da
fundação já caíra a 4.081 animais e
apenas 29% deles estavam no setor extra (1.200), número que deve ser menor no final deste ano.
Em meados da década de 90, o
descontrole era tanto que os funcionários justificam o inchaço do
setor extra dizendo que os animais eram arremessados para
dentro do parque pelos muros da
fundação. Nos últimos três anos,
porém, desde que o acervo foi totalmente catalogado, nenhum espécime apareceu pelo muro.
Hoje, as aves recebem anilhas
nas patas ainda filhotes. Quando
crescem, os anéis de identificação
já não saem mais de seus corpos.
Os répteis estão tatuados, e os mamíferos, chipados -procedimento já adotado em cerca de
80% dos exemplares do acervo.
Novatos e a greve
Interesses diversos não foram
contrariados apenas com o cadastramento e as regras de entrada e
saída dos bichos. Fornecedoras de
serviço e produtos ao zôo há mais
de 20 anos, muitas empresas tiveram de passar por licitação e perderam, permitindo uma redução
de cerca de 20% nos custos de manutenção do parque.
Mais: acostumados a fazer a feira na despensa do zoológico -levando até remédios para casa-,
muitos trabalhadores tiveram de
abandonar o hábito, já que o estoque passou a ser controlado.
Para os funcionários, porém,
houve uma mudança ainda mais
radical. Conhecida pela baixa rotatividade de seus empregados
-o tempo médio de casa é superior a dez anos-, a fundação
abriu as portas a profissionais recém-formados na área de biociências (veterinários, biólogos e
zootécnicos) e deu a eles funções
de confiança na administração.
Os 14 PAPs, como são chamados -uma referência às iniciais
do Programa de Aprimoramento
Profissional-, se opuseram a velhas práticas de gestão e, num
momento crucial, mantiveram o
zôo aberto mesmo sem 70% dos
231 celetistas: chefiando 11 presos
reeducandos e 25 estagiários, os
PAPs assumiram áreas desfalcadas durante os cinco dias da primeira greve da história da fundação, em junho de 2003.
Os suspeitos
Cruzados esses ingredientes
com fichas funcionais, escalas de
plantão, conhecimento do parque, antecedentes pessoais e acesso de cada um dentro das instalações, a Polícia Civil listou dez
principais suspeitos das mortes
dos 73 animais envenenados.
São pessoas que ainda trabalham no zôo e ex-funcionários.
Seriam alguns dos beneficiados
pelas irregularidades incorporadas havia décadas ao cotidiano da
instituição. Em fevereiro, 16 trabalhadores foram afastados do
contato com os animais.
Os assassinos agiram em grupo,
não há dúvida. Com um veneno
incolor, inodoro, insípido e hidrossolúvel, aparentemente não
queriam deixar rastros, mas foram atropelados pela ousadia:
despertaram a suspeita de crime
ao atacar, em série, exatamente as
maiores atrações do parque.
Mesmo com a repercussão do
caso, o zôo sustenta que, descontada a perda dos animais, não teve
até agora outros prejuízos. Apesar
de o número absoluto de visitantes ter sido menor na comparação
de fevereiro passado com o mesmo mês de 2003 -36.803 contra
52.228-, a fundação atribui a
queda ao número de "dias úteis"
-com sol e parque aberto- registrado neste ano: 14 contra 22.
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