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PETER LIBBY
Para cardiologista norte-americano, inflamação nas paredes da artéria também provoca aterosclerose
Colesterol não é culpado por 50% dos infartos, alerta médico
CLÁUDIA COLLUCCI
FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL
Metade das pessoas que morrem de infarto do miocárdio apresenta bons níveis de colesterol e a
causa pode ser uma inflamação
nas paredes da artéria, que leva à
formação da aterosclerose, principal fator de morte no mundo,
inclusive no Brasil.
O alerta é do cardiologista norte-americano Peter Libby, 57,
professor titular de Cardiologia
da Escola de Medicina de Harvard
(EUA) e hoje um dos maiores pesquisadores da doença.
A aterosclerose é caracterizada
pela formação de placas de gordura nas artérias. No país, mais de
300 mil mortes por ano por derrame AVC (Acidente Vascular Cerebral) e infarto do coração são
relacionadas à doença.
Há mais de 20 anos, e apesar da
resistência de seus colegas, Libby
começou o estudo sobre o papel
da inflamação no problema.
A novidade é que, graças a essas
pesquisas, a equipe do cardiologista desenvolveu um exame de
sangue chamado de teste da proteína C-reativa ultra-sensível, que
rastreia as pequenas inflamações
das artérias e pode predizer o risco de uma pessoa vir a ter um infarto ou um derrame mesmo sem
apresentar os tradicionais fatores
de risco: colesterol total igual ou
acima de 200 mg/dl, fumo e obesidade.
Chefe do departamento de medicina cardiovascular do Brigham
and Women's Hospital, em Boston (EUA), Peter Libby lidera um
grupo de pesquisadores que desenvolvem novas terapias de
combate a essa inflamação.
Na semana passada, o cardiologista norte-americano esteve no
Brasil para realizar uma palestra
destinada a médicos em Porto
Alegre (RS).
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Libby concedida à Folha na última quarta-feira, por telefone.
Folha - O que levou o sr. a pesquisar o envolvimento das paredes
das artérias no processo de formação da aterosclerose?
Peter Libby - Há 20 anos os cardiologistas estudavam principalmente o miocárdio, o músculo
cardíaco, mas eu achei que as
doenças do miocárdio em si mesmo eram raras, o problema real
era nas artérias.
Comecei a pensar que as paredes arteriais não eram apenas um
tubo sem vida. E que se pudéssemos compreender mais isso, poderíamos entender as doenças do
músculo cardíaco. Fui um dos
primeiros cardiologistas a trabalhar no campo da
biologia vascular e
muito cedo ficou
evidente que o processo inflamatório
[nas artérias] era
capital para a origem da aterosclerose. Foi o resultado
da aplicação das
ciências de base,
das pesquisas em
laboratório, aos
problemas clínicos.
Folha - Houve resistência à sua teoria sobre a inflamação?
Libby - Sim, muita. Acredito que a
comunidade médica resiste a mudanças. A idéia de o
colesterol ter uma
relação com os
eventos cardíacos
tem sido discutida
durante quase um
século. Vinte anos
atrás ninguém
acreditava ou achava importante que
essa inflamação estivesse envolvida
na aterosclerose.
Agora está muito
corrente essa idéia.
Folha - O sr. diz
que mesmo quem
não tem colesterol
alto ou hipertensão,
faz exercícios regularmente e não fuma pode morrer de
infarto ou Acidente
Vascular Cerebral
(AVC). A inflamação
explica isso?
Libby - Sim. Esse é o conceito da
inflamação na aterosclerose, porque a metade dos doentes que
morrem com infarto do miocárdio tem colesterol adequado [o
ideal é que o colesterol total fique
abaixo de 200 mg/ dl]. Então, hoje
em dia, sabemos
que a inflamação
faz parte desse risco, além do colesterol alto, do tabagismo e da obesidade.
Folha - Como explicar o desenvolvimento dessa inflamação? Ela tem origem genética?
Libby - Sem dúvida os fatores genéticos contribuem para os estímulos inflamatórios. Na população tem gente
que pode agüentar
o mesmo estímulo
inflamatório com
respostas diferentes. Estamos estudando tudo isso,
mas até agora não
há um padrão genético expressivo [relacionado à inflamação], mas acho
que dentro de cinco
a dez anos vamos
poder fazer exames
genéticos para estimar o risco de cada
pessoa.
Os fatores de risco
tradicionais também podem estimular a inflamação.
O tecido de gordura
em si pode ser um
estímulo ao processo inflamatório.
Folha - Na clínica
médica já existe um
protocolo de como
diagnosticar essa inflamação?
Libby - Temos uma posição
científica do American Heart Association (Associação Americana
de Cardiologia) que preconiza a
utilização do teste da proteína C-reativa ultra-sensível [exame de
sangue que rastreia um marcador
da inflamação] na faixa média de
risco. As pessoas nessa faixa têm
de 1% a 2% de chances de ter
evento cardíaco por ano, 20% em
até dez anos. As pessoas que têm
risco alto não precisam do teste
porque já necessitam de um tratamento muito agressivo.
Por outro lado, o grande público, com o risco muito baixo de
doenças cardíacas, também não
precisa do teste. Mas, em pessoas
que estão na faixa de risco médio,
nós podemos considerar o resultado da proteína, no quadro clínico geral da doença, e decidir se
elas devem ser tratadas preventivamente ou fazer modificações
no estilo de vida.
Folha - Qual o perfil desse indivíduo que está na faixa média de risco?
Libby - As pessoas que estão nessa faixa têm um pouco de pressão
alta, colesterol no limite, um pouco de sobrepeso. Hoje, os médicos
têm dificuldade de decidir se vão
ser agressivos ou não [se indicam
ou não tratamento medicamentoso] com essas pessoas. Mas essa
informação adicional da proteína
pode ser útil na decisão. Hoje, cerca de 20% da população pode estar nessa faixa média [para a Sociedade Brasileira de Cardiologia,
o risco médio se caracteriza pelo
colesterol alterado e a presença de
mais de um fator de risco, como
hipertensão e histórico familiar].
São pessoas que têm uma sensação aparente de bem-estar, mas já
podem apresentar risco cardíaco.
Folha - Já existem meios de tratar
essa inflamação?
Libby - Estamos tentando compreender como os remédios existentes hoje, as estatinas [droga
usada hoje para reduzir níveis de
colesterol "ruim" e que também
tem efeito antiinflamatório], podem agir para diminuir a inflamação. Estamos estudando novas
moléculas no núcleo das células
que podem interferir na resposta
inflamatória, mas são medicamentos que ainda estão em desenvolvimento.
Folha - Qual é o
custo desse exame
hoje nos EUA? É bancado pelo sistema
governamental de
saúde?
Libby - O teste é
muito barato, cerca
de US$ 15, US$ 20.
Muito mais barato
do que os exames
de imagem. Recentemente foi aprovado pelo sistema público de saúde americano [no Brasil, o
teste da proteína C
reativa ultra-sensível só está disponível nos laboratórios
privados e custa em
torno de R$ 70]. O
exame consegue
detectar pequenas
respostas inflamatórias que são associadas ao processo
de aterosclerose.
O sr. abandonou
por um tempo a clínica para fazer essa
pesquisa. Foi uma
opção pessoal?
Libby Sim. É muito importante que
as universidades
dêem apoio aos
médicos que queiram fazer pesquisas
nas ciências de base. Se eu não tivesse
a formação como
cardiologista clínico, não teria descoberto esse novo
campo de formação da aterosclerose. Tem de juntar a clínica com a ciência.
Esse é um investimento a longo
prazo na educação dos jovens e na
ciência e no campo químico. Estamos agora no começo de uma era
de pesquisas em que traduzimos
os resultados do laboratório para
o leito do doente.
Folha - Que estratégia é necessária
para tornar isso mais
rápido?
Libby - Há duas
coisas. Precisa do
dinheiro para pesquisa e também
uma turma de pessoas que tenha tempo assegurado para
fazer pesquisa. Se o
médico tem de ver
doentes cinco vezes
por semana não
adianta para fazer
pesquisa. Por isso a
carreira de pesquisador clínica tem de
ser reconhecida e
paga. Acho que no
Estado de São Paulo, a Fapesp tem feito coisas boas nesse
sentido. Mas para
estimular mais progresso, é necessário
mais apoio do governo. Para estimular jovens a ver que
há a possibilidade
de uma carreira na
pesquisa médica.
Folha - No Brasil,
os médicos ficam
muito dependentes
da pesquisa que os
laboratórios querem
fazer, pagar. O que
acha disso?
Libby - Acho que o
melhor seria em
conjunto, com o
apoio do governo e
apoio da indústria.
Mas tem de haver
um filtro entre a indústria e o pesquisador. Nos ensaios clínicos
grandes, evidentemente, precisamos do apoio da indústria farmacêutica. São muito caros, impossíveis de pagar, mesmo nos EUA.
Deve haver um conselho independente para analisar os resultados, os desenhos dos estudos e
para filtrar os dados. É preciso ter
um acordo para que os resultados
sejam publicados mesmo que o
estudo seja negativo.
O que existe no Brasil traz o risco de influência sobre a ciência, se
não houver controle. Os melhores
pesquisadores exigem controle
dos dados e independência da
empresa farmacêutica antes de
acertar o apoio.
Folha - Como deveria ser um programa de prevenção aos riscos cardíacos em um país como o Brasil,
em que falta dinheiro para tudo?
Libby - É muito importante não
imitar o que há de ruim na civilização americana, o fast-food, a
dieta rica em gorduras, o sal.
Acho que as dietas tradicionais,
com fibras, com legumes e frutas,
são muito melhores para o organismo. Nós temos nos EUA agora
uma epidemia de obesidade. Eu
espero que a América do Sul não
vá imitar. É o caminho para uma
epidemia de risco cardíaco. E a
obesidade vai provavelmente levar a uma epidemia de aterosclerose. Cada indivíduo deve tentar
fazer exercícios todos os dias, deixar de fumar, ter uma dieta moderada e variada e tratar a pressão
alta e o colesterol.
Folha - E os governos, o que devem fazer?
Libby - Posso fazer comentários
sobre o que ocorre nos EUA. O
governo está tirando orçamento
da educação física nas escolas. É
um erro colossal para a saúde pública. Deve ter programa de educação física, de dieta, educação
contra o tabagismo no nível da escola primária para tentar prevenir
o risco cardíaco.
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