São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PETER LIBBY

Para cardiologista norte-americano, inflamação nas paredes da artéria também provoca aterosclerose

Colesterol não é culpado por 50% dos infartos, alerta médico

CLÁUDIA COLLUCCI
FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Metade das pessoas que morrem de infarto do miocárdio apresenta bons níveis de colesterol e a causa pode ser uma inflamação nas paredes da artéria, que leva à formação da aterosclerose, principal fator de morte no mundo, inclusive no Brasil.
O alerta é do cardiologista norte-americano Peter Libby, 57, professor titular de Cardiologia da Escola de Medicina de Harvard (EUA) e hoje um dos maiores pesquisadores da doença.
A aterosclerose é caracterizada pela formação de placas de gordura nas artérias. No país, mais de 300 mil mortes por ano por derrame AVC (Acidente Vascular Cerebral) e infarto do coração são relacionadas à doença.
Há mais de 20 anos, e apesar da resistência de seus colegas, Libby começou o estudo sobre o papel da inflamação no problema.
A novidade é que, graças a essas pesquisas, a equipe do cardiologista desenvolveu um exame de sangue chamado de teste da proteína C-reativa ultra-sensível, que rastreia as pequenas inflamações das artérias e pode predizer o risco de uma pessoa vir a ter um infarto ou um derrame mesmo sem apresentar os tradicionais fatores de risco: colesterol total igual ou acima de 200 mg/dl, fumo e obesidade.
Chefe do departamento de medicina cardiovascular do Brigham and Women's Hospital, em Boston (EUA), Peter Libby lidera um grupo de pesquisadores que desenvolvem novas terapias de combate a essa inflamação.
Na semana passada, o cardiologista norte-americano esteve no Brasil para realizar uma palestra destinada a médicos em Porto Alegre (RS).
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Libby concedida à Folha na última quarta-feira, por telefone.
 

Folha - O que levou o sr. a pesquisar o envolvimento das paredes das artérias no processo de formação da aterosclerose?
Peter Libby -
Há 20 anos os cardiologistas estudavam principalmente o miocárdio, o músculo cardíaco, mas eu achei que as doenças do miocárdio em si mesmo eram raras, o problema real era nas artérias.
Comecei a pensar que as paredes arteriais não eram apenas um tubo sem vida. E que se pudéssemos compreender mais isso, poderíamos entender as doenças do músculo cardíaco. Fui um dos primeiros cardiologistas a trabalhar no campo da biologia vascular e muito cedo ficou evidente que o processo inflamatório [nas artérias] era capital para a origem da aterosclerose. Foi o resultado da aplicação das ciências de base, das pesquisas em laboratório, aos problemas clínicos.

Folha - Houve resistência à sua teoria sobre a inflamação?
Libby -
Sim, muita. Acredito que a comunidade médica resiste a mudanças. A idéia de o colesterol ter uma relação com os eventos cardíacos tem sido discutida durante quase um século. Vinte anos atrás ninguém acreditava ou achava importante que essa inflamação estivesse envolvida na aterosclerose. Agora está muito corrente essa idéia.

Folha - O sr. diz que mesmo quem não tem colesterol alto ou hipertensão, faz exercícios regularmente e não fuma pode morrer de infarto ou Acidente Vascular Cerebral (AVC). A inflamação explica isso?
Libby -
Sim. Esse é o conceito da inflamação na aterosclerose, porque a metade dos doentes que morrem com infarto do miocárdio tem colesterol adequado [o ideal é que o colesterol total fique abaixo de 200 mg/ dl]. Então, hoje em dia, sabemos que a inflamação faz parte desse risco, além do colesterol alto, do tabagismo e da obesidade.

Folha - Como explicar o desenvolvimento dessa inflamação? Ela tem origem genética?
Libby -
Sem dúvida os fatores genéticos contribuem para os estímulos inflamatórios. Na população tem gente que pode agüentar o mesmo estímulo inflamatório com respostas diferentes. Estamos estudando tudo isso, mas até agora não há um padrão genético expressivo [relacionado à inflamação], mas acho que dentro de cinco a dez anos vamos poder fazer exames genéticos para estimar o risco de cada pessoa.
Os fatores de risco tradicionais também podem estimular a inflamação. O tecido de gordura em si pode ser um estímulo ao processo inflamatório.

Folha - Na clínica médica já existe um protocolo de como diagnosticar essa inflamação?
Libby -
Temos uma posição científica do American Heart Association (Associação Americana de Cardiologia) que preconiza a utilização do teste da proteína C-reativa ultra-sensível [exame de sangue que rastreia um marcador da inflamação] na faixa média de risco. As pessoas nessa faixa têm de 1% a 2% de chances de ter evento cardíaco por ano, 20% em até dez anos. As pessoas que têm risco alto não precisam do teste porque já necessitam de um tratamento muito agressivo.
Por outro lado, o grande público, com o risco muito baixo de doenças cardíacas, também não precisa do teste. Mas, em pessoas que estão na faixa de risco médio, nós podemos considerar o resultado da proteína, no quadro clínico geral da doença, e decidir se elas devem ser tratadas preventivamente ou fazer modificações no estilo de vida.

Folha - Qual o perfil desse indivíduo que está na faixa média de risco?
Libby -
As pessoas que estão nessa faixa têm um pouco de pressão alta, colesterol no limite, um pouco de sobrepeso. Hoje, os médicos têm dificuldade de decidir se vão ser agressivos ou não [se indicam ou não tratamento medicamentoso] com essas pessoas. Mas essa informação adicional da proteína pode ser útil na decisão. Hoje, cerca de 20% da população pode estar nessa faixa média [para a Sociedade Brasileira de Cardiologia, o risco médio se caracteriza pelo colesterol alterado e a presença de mais de um fator de risco, como hipertensão e histórico familiar]. São pessoas que têm uma sensação aparente de bem-estar, mas já podem apresentar risco cardíaco.

Folha - Já existem meios de tratar essa inflamação?
Libby -
Estamos tentando compreender como os remédios existentes hoje, as estatinas [droga usada hoje para reduzir níveis de colesterol "ruim" e que também tem efeito antiinflamatório], podem agir para diminuir a inflamação. Estamos estudando novas moléculas no núcleo das células que podem interferir na resposta inflamatória, mas são medicamentos que ainda estão em desenvolvimento.

Folha - Qual é o custo desse exame hoje nos EUA? É bancado pelo sistema governamental de saúde?
Libby -
O teste é muito barato, cerca de US$ 15, US$ 20. Muito mais barato do que os exames de imagem. Recentemente foi aprovado pelo sistema público de saúde americano [no Brasil, o teste da proteína C reativa ultra-sensível só está disponível nos laboratórios privados e custa em torno de R$ 70]. O exame consegue detectar pequenas respostas inflamatórias que são associadas ao processo de aterosclerose.

O sr. abandonou por um tempo a clínica para fazer essa pesquisa. Foi uma opção pessoal?
Libby
Sim. É muito importante que as universidades dêem apoio aos médicos que queiram fazer pesquisas nas ciências de base. Se eu não tivesse a formação como cardiologista clínico, não teria descoberto esse novo campo de formação da aterosclerose. Tem de juntar a clínica com a ciência.
Esse é um investimento a longo prazo na educação dos jovens e na ciência e no campo químico. Estamos agora no começo de uma era de pesquisas em que traduzimos os resultados do laboratório para o leito do doente.

Folha - Que estratégia é necessária para tornar isso mais rápido?
Libby -
Há duas coisas. Precisa do dinheiro para pesquisa e também uma turma de pessoas que tenha tempo assegurado para fazer pesquisa. Se o médico tem de ver doentes cinco vezes por semana não adianta para fazer pesquisa. Por isso a carreira de pesquisador clínica tem de ser reconhecida e paga. Acho que no Estado de São Paulo, a Fapesp tem feito coisas boas nesse sentido. Mas para estimular mais progresso, é necessário mais apoio do governo. Para estimular jovens a ver que há a possibilidade de uma carreira na pesquisa médica.

Folha - No Brasil, os médicos ficam muito dependentes da pesquisa que os laboratórios querem fazer, pagar. O que acha disso?
Libby -
Acho que o melhor seria em conjunto, com o apoio do governo e apoio da indústria. Mas tem de haver um filtro entre a indústria e o pesquisador. Nos ensaios clínicos grandes, evidentemente, precisamos do apoio da indústria farmacêutica. São muito caros, impossíveis de pagar, mesmo nos EUA.
Deve haver um conselho independente para analisar os resultados, os desenhos dos estudos e para filtrar os dados. É preciso ter um acordo para que os resultados sejam publicados mesmo que o estudo seja negativo.
O que existe no Brasil traz o risco de influência sobre a ciência, se não houver controle. Os melhores pesquisadores exigem controle dos dados e independência da empresa farmacêutica antes de acertar o apoio.

Folha - Como deveria ser um programa de prevenção aos riscos cardíacos em um país como o Brasil, em que falta dinheiro para tudo?
Libby -
É muito importante não imitar o que há de ruim na civilização americana, o fast-food, a dieta rica em gorduras, o sal. Acho que as dietas tradicionais, com fibras, com legumes e frutas, são muito melhores para o organismo. Nós temos nos EUA agora uma epidemia de obesidade. Eu espero que a América do Sul não vá imitar. É o caminho para uma epidemia de risco cardíaco. E a obesidade vai provavelmente levar a uma epidemia de aterosclerose. Cada indivíduo deve tentar fazer exercícios todos os dias, deixar de fumar, ter uma dieta moderada e variada e tratar a pressão alta e o colesterol.

Folha - E os governos, o que devem fazer?
Libby -
Posso fazer comentários sobre o que ocorre nos EUA. O governo está tirando orçamento da educação física nas escolas. É um erro colossal para a saúde pública. Deve ter programa de educação física, de dieta, educação contra o tabagismo no nível da escola primária para tentar prevenir o risco cardíaco.


Texto Anterior: Enem: Inscritos são informados sobre locais por telefone
Próximo Texto: Aos 57, médico corre diariamente
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.