São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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IMPUNIDADE CORDIAL
Delegado não registra, promotor não denuncia, juiz insiste em acordo e nenhum caso chega ao STF

Justiça não enxerga racismo no país

"Já me negaram emprego, mas eu nunca reclamei. Agente é criado assim mesmo, aprendendo a não levar em conta." Iara Silva Caldeira, 38


ANDRÉ LOZANO

RODRIGO VERGARA
da Reportagem Local

Passados quase dez anos da aprovação da lei 7.716, que tornou crime a prática de racismo no país, a discriminação racial continua impune no Brasil.
A impunidade pode ser expressa no número incipiente de condenações por crime de racismo na Justiça brasileira. A Lei Caó, como ficou conhecida a 7.716, entrou em vigor em 5 de janeiro de 1989.
Em São Paulo, por exemplo, só há uma condenação com base na lei no Tribunal de Justiça, proferida em 95, contra um radialista de São Carlos que fez comentários racistas no ar.
No resto do país -que tem 45% de sua população de origem negra-, só haveria mais duas sentenças, segundo os serviços de atendimento a vítimas de racismo, que atuam em oito Estados.
Os dois tribunais de instância máxima do país, o STF (Supremo Tribunal Federal) e o STJ (Superior Tribunal de Justiça), nunca julgaram um recurso de uma condenação por racismo -indício da falta de condenações nos Estados.
Por isso, não há, nos tribunais superiores brasileiros, nenhuma jurisprudência sobre assuntos raciais.
O "racismo cordial" que impera no país dificulta o próprio reconhecimento de um gesto racista.
Na opinião dos movimentos anti-racismo, o maior problema reside na resistência de policiais e juízes em reconhecer o preconceito.
"Não é um defeito da lei. Da prova testemunhal, passando pelo inquérito na polícia até a decisão do Judiciário, há preconceito contra o negro. Os três níveis são incapazes de reconhecer o racismo contra o negro", diz Carlos Moura, secretário-executivo do GTI (Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra), órgão criado pelo governo federal.
"É difícil encontrar delegado que registre a queixa de racismo. Ele vai dizer: "Que é isso, foi só brincadeira, vamos encerrar isso por aqui'", diz Moura. "E, quando o caso chega ao Ministério Público, há dificuldade em fazer o promotor denunciar."
A resistência se estende ao Judiciário, segundo Sergio Martins, coordenador do programa jurídico do Ceap (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas), no Rio de Janeiro.
"Na primeira audiência em juízo, há uma pressão enorme do juiz para que haja um acordo, uma retratação", diz Martins.
Sueli Carneiro, do SOS Racismo, o mais antigo serviço de atendimento a vítimas de racismo contra o negro, acrescenta: "Há falta de vontade política para botar na cadeia alguém que praticou racismo. É considerado crime de menor dano, mas é um crime que inviabiliza a vida das pessoas".

Poucas reclamações
Mesmo por parte da população vítima da discriminação há poucas denúncias.
De maio de 93 a dezembro de 95, a Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo registrou 250 queixas, uma a cada quatro dias. E a quase totalidade dos casos não pôde ser enquadrada na lei de racismo, por tratar-se de injúria.
Na Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, as queixas foram ainda menos frequentes. De 1993 a 1996, o órgão recebeu 35 casos de discriminação racial.

Debate
A impunidade despertou a atenção do Ministério da Justiça.
Amanhã, pela primeira vez, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos do ministério vai promover uma reunião com ministros do STF e do Tribunal Superior do Trabalho, juízes, advogados, promotores e procuradores de Justiça para "traçar estratégias de um plano de ação para que os casos de discriminação racial sejam facilmente identificados e reconhecidos pela Justiça brasileira".
"Embora a legislação nacional tenha diversos indicadores sobre racismo, a discriminação continua sendo absolutamente desconsiderada pelos operadores de direito no Brasil, que a desconhecem ou não a reconhecem como legítima", diz documento do encontro.
Na quinta-feira, um grupo de advogados ligados a entidades de defesa dos direitos dos negros entregará ao ministro da Justiça, Renan Calheiros, propostas de emendas ao anteprojeto no novo Código Penal.
A principal proposta é a que caracteriza como circunstância agravante a qualquer crime o fato de ele ter sido motivado por "discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, sexo, orientação sexual, religião, porte de deficiência, procedência nacional ou naturalidade".




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