São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 2000

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SOCIEDADE
No Brasil, as uniões entre pessoas do mesmo grupo de cor ou raça correspondem a 77,4% das relações conjugais
Casamento reflete discriminação racial

FERNANDA DA ESCÓSSIA
DA SUCURSAL DO RIO

Num Brasil de história marcada pela miscigenação, o amor ainda se guia pelas diferenças de tom de pele: três em cada quatro casamentos do país acontecem entre pessoas de mesma raça ou cor.
Brancos casam mais com brancos, negros com negros e pardos com pardos -a taxa média no Brasil é de 77,4% de uniões endogâmicas (entre pessoas do mesmo grupo de cor ou raça).
É o que conclui uma pesquisa realizada pelo cientista social José Luis Petruccelli, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), com base em dados das Pnads (Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios) e que usa a terminologia do instituto para as classificações de raça/cor.
Para o pesquisador, essas relações conjugais refletem o tipo de relação racial existente no país: a discriminação velada ou explícita sofrida pelos negros e mestiços.
"Esse altíssimo nível de endogamia mostra que as barreiras raciais persistem. A sociedade brasileira ainda é altamente racista."
O mais surpreendente é que, segundo o pesquisador, a composição da população brasileira -com 54% de brancos, 39,5% de pardos, 5,7% de negros e 0,8% de "outros", medida pelo IBGE em 1998- aponta para um nível de endogamia muito menor, de apenas 47%. A realidade (77,4%) é quase o dobro disso.
"O número de 39,5% de pardos resulta de alguns fatores, entre eles cinco séculos de colonização e miscigenação. Além do mais, negros e pardos estão na faixa de população com menor renda, menor escolaridade e maior taxa de fecundidade. Por fim, a população parda inclui gente muito diferente, de várias descendências."
Os negros apresentam a maior taxa de casamentos endogâmicos (84,3%), seguidos por brancos (75,6%) e pardos (72,4%). Esses valores já equilibram as diferenças de tamanho dos três grupos, pois foram ajustados por Petruccelli como se houvesse no país o mesmo número de brancos, negros e pardos.
"Assim, não é possível dizer que a endogamia é alta porque há mais brancos na população. Aqui, é como se os três grupos fossem do mesmo tamanho. A endogamia é maior entre os negros porque eles são, de fato, o grupo mais isolado", afirma.
Em 1987, a taxa média de casamentos endogâmicos na população era de 80,5%. Uma diferença que Petruccelli considera "insignificante" em relação aos 77,4% verificados em 1998, porque, segundo ele, numa pesquisa por amostragem, a redução é insuficiente para indicar qualquer tipo de tendência.

Casamentos inter-raciais
Minoria estatística de 22,6%, os casamentos inter-raciais são um ponto de debate, ora criticados como forma de ascensão social, ora aceitos como forma de integração e de aceitação do amor, seja ele de que cor for.
"Esses casamentos aparecem na novela e na publicidade e até parecem ter aumentado, mas tenho a impressão de que eles são uma cortina de fumaça para ocultar ainda mais o racismo", afirma Petruccelli, que apresentará seu estudo no encontro anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciência Sociais), que acontece esta semana no Rio de Janeiro.
No movimento negro, o casamento inter-racial é encarado muitas vezes como uma tentativa de ascensão social e de "branqueamento". Os exemplos mais citados, de Pelé a Alexandre Pires, são os de jogadores de futebol e pagodeiros que namoram mulheres brancas -preferencialmente loiras, verdadeiras ou não.
"Eu não sou contra o casamento inter-racial, porque acho que o amor não tem cor. Só alerto para o fato de que ele não pode se transformar numa tentativa de disfarce e auto-afirmação da raça negra", afirma Ivanir dos Santos, do Ceap (Centro de Apoio a Populações Marginalizadas).
"Se os negros só casam com brancas, até que ponto conseguiram quebrar o racismo dentro deles? Por que não casar com uma negra? A gente não é contra o casamento com brancos, mas questiona essa lei de casar só com brancas. Jogador de futebol, por exemplo, é um pacote, arruma uma bola e uma loira", afirma a militante do movimento negro e vereadora Jurema Batista (PT).
As mulheres negras, mostra a pesquisa de Petruccelli, são as que mais encontram dificuldade para casar, especialmente aquelas com maior escolaridade.
Entre as mulheres que estudaram mais de oito anos, 50,4% das negras estão solteiras; a média nacional de solteiras nessa condição de instrução é de 39,5%.
Entre brancas desse grupo, a taxa de solteiras é de 37,1%, e, entre pardas, de 44,5%.
"Tenho a impressão de que os brancos só querem mesmo as brancas. Então, hoje eu estou preferindo namorar negros", diz a estudante negra Cristiane da Silva.
Desigualdades raciais no Brasil aparecem também em indicadores sociais: taxa de analfabetismo, escolaridade, emprego e renda.
A taxa média de analfabetismo medida pelo IBGE fica em 13,8%. Entre negros, é de 21,6%, entre pardos, de 20,7% e, entre brancos, de 8,4%. No item renda, 12% das famílias cujos chefes são brancos vivem com meio salário mínimo per capita, mas 24,5% das famílias chefiadas por negros sobrevivem com essa renda.


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