São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 2006

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MOACYR SCLIAR

Não roubarás


Tinha certeza de que,se entrasse numa igreja para roubar, mais cedo ou mais tarde seria castigado

 Boa parte dos fiéis que freqüentam as igrejas do centro de São Paulo já sabe: nem durante uma missa pode-se bobear. Na hora de comungar, a bolsa precisa ir junto. Ao dar uma oferenda, não se deve abrir a carteira na frente de todo mundo. Celulares e relógios não podem ser ostentados.
São comuns casos de fiéis que são roubados durante as celebrações. Maria Emília Souza, 48, não desgruda dos seus pertences. "Graças a Deus nunca fui roubada, mas já vi ladrõezinhos furtando carteiras e celulares sem os donos nem perceberem", diz. "A gente não tem sossego nem para falar com Deus." "Falta juízo aos ladrões", afirma padre Pascoali Priolo, da igreja São Januário, na Mooca (zona leste). A igreja de Priolo já foi furtada duas vezes neste ano. Em março, os ladrões levaram cálices, depredaram o sacrário e roubaram até o pára-raios. "Como era de cobre, levaram para vender ao ferro-velho." Na semana passada, a igreja da Consolação, no centro, foi mais uma que teve os fios de seu pára-raios furtados.

Cotidiano, 16 de outubro

Verdade seja dita, ele hesitou muito. Porque, apesar de já ter assaltado gente em bares, em restaurantes, nas ruas, em carros, nunca o fizera numa igreja. Um amigo, que em outra época fora seu cúmplice, tentava inutilmente convencê-lo: é mole, cara, o pessoal que vai a igreja não reage, não é de briga, não precisa nem usar arma. A ele, aquilo parecia um sacrilégio, uma tentação.
Não era religioso, mas acreditava em Deus e na justiça divina. Tinha certeza de que, se entrasse numa igreja para roubar, mais cedo ou mais tarde seria castigado.
Mas então teve um sonho, um sonho que foi decisivo. Sonhou que estava num lugar distante, desolado, perdido entre dunas de areia: um deserto. Sem saber o que fazer, olhava ao redor, desorientado, quando de repente avistou um homem. Uma figura exótica, sinistra mesmo: vestia uma espécie de fraque, usava cavanhaque e exibia um sorriso malicioso. Você está indeciso, disse o estranho, você não sabe se assalta uma igreja ou não, mas você está só perdendo tempo: é a coisa mais fácil do mundo.
Acordou resolvido: naquele mesmo dia faria o assalto. E, para a estréia, escolheu uma pequena e modesta igreja de bairro. O que se revelou uma verdadeira decepção. Quando lá chegou, estava começando a chover e, talvez por causa disso, o lugar estava deserto.
Nenhum fiel ali, nem homem, nem mulher, ninguém para ser assaltado. E na igreja propriamente dita, nada que aparentemente valesse a pena carregar; apenas algumas modestas imagens de santos. Foi até o ofertório, sacudiu-o: nada, estava vazio.
Uma violenta trovoada fez estremecer o templo, o que lhe deu uma idéia: o pára-raios. Sempre podia render alguma coisa, afinal era de cobre, e ele conhecia um ferro-velho que pagaria uma boa grana.
Sem muito esforço, retirou o pára-raios, uma haste com o seu fio, e foi embora sob o temporal. Ao atravessar o descampado, aconteceu aquilo que sempre pode ocorrer com quem carrega pára-raios: foi atingido por uma descarga elétrica fulminante. A última coisa que viu foi o homem que aparecera em seu sonho, mostrando os caninos num sorriso irônico. E estava bem abrigado da chuva. Porque, em ocasiões de temporal, o diabo não veste Prada.
O diabo veste uma elegante capa preta. Ótima para quem tem de seguir pecadores sob a tormenta.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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