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ARTIGO
"Alguma coisa está errada por aqui"
MIGUEL SROUGI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 17 de fevereiro último, tomei
posse na Faculdade de Medicina
da USP envolvido por sentimentos intensos. O primeiro deles de
reconhecimento pela graça. Num
país que tem 53 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de
pobreza, eu consegui escapar.
Num país onde apenas 10% da
população adulta chegou à universidade, eu consegui ser incluído. Num país que agora tem 305
mil médicos e
menos de 50
atingem a posição de professor
titular na USP,
eu fui escolhido.
Estava tomado, também,
por outro sentimento. Passava
a ter uma nova
tribuna para
debater três temas seminais
da área médica, ainda não
bem resolvidos
e que me despertam um certo desconforto: o sentido real da ciência
e da pesquisa em nosso meio, o
nosso papel como educadores médicos e a iniqüidade dos sistemas
públicos de saúde.
Quando falo em sentido real da
ciência e pesquisa, penso que o
nosso país não despertou completamente para uma nova realidade, que está transformando as sociedades mais desenvolvidas. Nelas, consolidou-se um novo paradigma, segundo o qual os investimentos em pesquisa devem ser intensamente promovidos sempre
que eles ampliarem o estoque de
conhecimentos e forem seguidos
de desenvolvimento tecnológico,
ou seja, quando produzirem
avanços que beneficiem a sociedade e promovam o bem-estar do
homem. Aqui no Brasil, essa idéia
não foi bem compreendida, por
isso, o conhecimento tem sido gerado sem um compromisso maior
com a qualidade e com sua aplicação prática enriquecedora. Como conseqüência, importamos o
saber e remetemos anualmente
para o exterior
cerca de US$ 4 bilhões, sob o rótulo
de "transferência
de tecnologia". Para quem não entendeu, US$ 4 bilhões representam
quase o dobro de
tudo o que o governo federal destina para a educação do povo brasileiro a cada ano.
O papel transformador que a promoção da ciência e
da pesquisa pode
ter sobre o destino de uma nação
tem na Coréia um exemplo emblemático. Em 1976, o Brasil registrou nos Estados Unidos três vezes
mais patentes do que a Coréia e a
nossa renda per capita era três vezes maior. Com investimentos
maciços em educação e em desenvolvimento tecnológico, a Coréia
registrou, no ano de 2004, cerca
de 4.000 patentes nos Estados
Unidos; o Brasil, somente 220.
Nesse mesmo ano, a renda per capita na Coréia atingiu US$
20.400; no Brasil, ela foi de apenas
US$ 7.700.
A segunda questão seminal que
me sensibiliza é a da educação
médica. O exercício da medicina
realizado na sua dimensão maior
apóia-se em dois pilares: o conhecimento científico e o humanismo. Este conceito, aparentemente
óbvio, explica por que o bom médico não é aquele apenas dotado
de ilustração técnica mas também aquele que tem compaixão e
estabelece relações humanas profundas, aquele que se posta ao lado do seu paciente, como leal
companheiro de
viagem.
Com toda a
intolerância que
prevalece na
nossa sociedade,
incapaz de aceitar até os fatos
médicos inexoráveis, como a
decadência física pela idade e
as doenças ou a
morte incontornáveis, com todo o ambiente
indigente no
qual atua um
sem-número de médicos brasileiros e com todas as imperfeições da
natureza humana, que atinge inclusive os médicos, é ainda possível produzir bons médicos? Tenho
certeza de que sim.
Michelangelo dizia que cada
bloco de mármore bruto esconde
uma figura esculpida, pronta para ser liberada com um pouco de
trabalho e talento. Essa é a função
dos educadores médicos. Descobrir nos blocos amorfos os pequeninos Davis e Pietás dotados não
apenas de conhecimentos para
curar mas principalmente de sentimentos humanísticos genuínos
que irão reconfortar. E moldar
nos blocos amorfos cidadãos que,
além de amenizar o sofrimento,
sejam capazes de influenciar suas
comunidades, modificando o cotidiano das pessoas, transformando a sociedade e ajudando a desenhar um novo país.
Finalmente, na área de assistência médica, mais do que propor soluções para o nosso sistema
público de saúde, injusto e perdulário, gostaria de
expressar um pouco das minhas angústias. De acordo
com o Projeto do
Milênio, patrocinado pelas Nações
Unidas, se cada
país em desenvolvimento aplicar
corretamente, a
cada ano, US$ 110
por habitante, ao
cabo de dez anos
estarão resolvidos
os problemas da
fome, da mortalidade materna e infantil e das
doenças transmissíveis que assolam os países do Terceiro Mundo.
No Brasil, são gastos, anualmente, US$ 124 por habitante na área
de saúde e nem o mais convicto
otimista pode achar que as coisas
estão bem ou irão ficar bem. Alguma coisa está errada por aqui!
A bem da verdade, não só aqui
mas também em todo o planeta.
De acordo com a Organização
Mundial da Saúde, enquanto no
Japão a expectativa de vida da
população aproxima-se de 85
anos, existem 13 países no mundo, os mais pobres, obviamente,
onde a expectativa de vida é menor que 35 anos; em Serra Leoa, a
vida média de seus habitantes é
de apenas 26 anos. A própria Organização Mundial da Saúde dá
uma das explicações para essa injustiça, a chamada "desproporção 10/90": Cerca de 90% dos recursos mundiais gastos na saúde
são consumidos pelos 10% mais
ricos da população; os restantes
90% dos habitantes do planeta
recebem apenas 10% do total de
recursos. Fico aflito quando leio
isso; meu desconforto aumenta
quando desconfio que isso deva
estar acontecendo no Brasil.
Infelizmente minhas aflições
não terminam por aí; na verdade,
elas se tornam quase insuportáveis quando descubro que o Brasil
pagou, em 2005, R$ 157 bilhões de
juros da sua dívida. Cento e cinqüenta e sete bilhões de juros, sem
reduzir a nossa dívida e sem atenuar as injustiças, a penúria e a
desigualdade no Brasil. Cento e
cinqüenta e sete bilhões de juros,
enquanto o governo federal gastou somente R$ 7 bilhões com a
educação e R$ 33 bilhões com a
saúde para assistir a todo o povo
brasileiro. Não quero ser panfletário, muito menos pregar a irresponsabilidade, mas alguma coisa
está errada por aqui!
No início do texto, lembrei que
53 milhões de brasileiros vivem
abaixo dos limites da dignidade
humana, o que me remete a um
outro país, aquele dos outros 132
milhões, onde, em algumas áreas,
a renda per capita anual chegou a
quase R$ 17 mil em 2003 (no Maranhão foi inferior a R$ 2.500),
onde os índices de analfabetismo
situam-se em 7% (na região Nordeste é de 31%), onde a taxa de
mortalidade infantil em 2003 foi
de 17 para cada mil nascimentos
(no Maranhão foi de 56). Como
membro do grupo dos 132, sou tomado por uma aflição quase insuportável quando imagino que o
outro Brasil pode estar cantando
Chico Buarque de Holanda: "Sei
que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente /
Guarda um cravo para mim / Sei
que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também
quanto é preciso, pá / Navegar,
navegar".
Enquanto nossos governantes
não oferecem os barcos e portos
seguros, acho que não custa nada
tentarmos fazer a nossa parte.
Miguel Srougi, 59, médico, pós-graduado em urologia pela Harvard Medical
School (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP.
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