São Paulo, sábado, 24 de março de 2007

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ARTIGO

O pássaro emudecido

RUBEM ALVES
COLUNISTA DA FOLHA

M UITOS DOS meus leitores não gostaram do meu último artigo. Alguns discordaram mansamente. Outros, com ira. Disseram que eu escrevia movido por preconceitos protestantes. Nada mais distante da verdade. Rompi com o protestantismo oficial há mais de 30 anos.
No dia 15 de setembro de 1971, dia do meu aniversário, escrevi minha carta demissória, por duas razões: a intolerância da igreja para com aqueles que pensavam pensamentos diferentes e, em segundo lugar, o fato de que a denominação a que eu pertencia ter apoiado o golpe militar de 1964.
Do protestantismo foi-se tudo. Sobrou aquilo a que Paul Tillich deu o nome de "espírito protestante": o amor à liberdade de ser e de pensar, o respeito à consciência individual e a crença de que os homens se relacionam com Deus pessoalmente, sem a mediação de instituições religiosas.
Fui dos primeiros protestantes a participar de encontros ecumênicos com os católicos, isso em 1957, muito antes do Concílio do Vaticano. Ainda seminarista saíamos ao cair da noite -um grupinho de cinco estudantes- rumo ao convento dos dominicanos, na rua Caiubi, liderados por um missionário norte-americano, Richard Shaull.
Secretamente. Se fôssemos descobertos seríamos expulsos. Nessas reuniões tive, pela primeira vez, a experiência de um diálogo com os católicos.
Desde então o círculo dos católicos que admiro e respeito só tem crescido. Alceu de Amoroso Lima, D. Pedro de Casaldáliga, Leonardo Boff, Ivone Gebara, Carlos Rodrigues Brandão. Esses fazem parte da minha "igreja invisível" e sei que participariam comigo da eucaristia.
Quando escrevi meu último artigo eu me encontrava sob o impacto, mistura de incredulidade e indignação, de uma notícia que me chegara.
Era um artigo do historiador católico Eduardo Hoornaert, do qual transcrevo o primeiro parágrafo: "Mais um capítulo numa dolorosa história que já vai longe: a "penitência perpétua" imposta a Jon Sobrino".
No dia 15 de março, a Congregação Vaticana para a Defesa da Fé procede à promulgação de uma "penitência" infligida ao padre jesuíta Jon Sobrino, nascido em 1938 em Bilbao, Espanha, e residente desde 1958 em El Salvador, onde foi teólogo de Dom Oscar Romero.
A penitência consistirá no "silêncio mais absoluto" do teólogo, não naquele "silêncio de um ano" imposto a Leonardo Boff, mas num silêncio perpétuo, no apagar "per saecula saeculorum" de uma voz que incomoda.
Qual a razão de tão severo procedimento? Onde foi que Sobrino pisou feio? O texto do Vaticano explicita: "O teólogo não afirma abertamente a consciência divina de Jesus histórico", "ele oculta a divindade de Jesus".
A indignação está sendo profunda entre um sem-número de católicos e protestantes. Frei Beto lamenta ao final de um artigo: "Como renovar a Igreja Católica se suas melhores cabeças estão sob a guilhotina de quem enxerga heresia onde há fidelidade do Espírito Santo: Hans Kung em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Schillebeeckx em 1980, 1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa Balasuriya, em 1997; Anthony de Mello, em 1998; Reinhard Messner, em 2000; Jacques Dupuis e Marciano Vidal, em 2001; Roger Haight, em 2004..."
Agora, pensando em Jesus: não creio que ele emudeceria perpetuamente um pássaro só por não gostar do seu canto...


NA INTERNET - Assinantes da Folha e do UOL podem ler a coluna anterior de Rubem Alves ("A Praga") em www.folha.com.br/070825


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