São Paulo, quinta-feira, 24 de março de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

PASQUALE CIPRO NETO

"Quando lhe disseram que também..."


A quem se refere o "lhe" dos versos do memorável e pequeno poema "Anedota Búlgara", de Drummond?


O TEXTO DA SEMANA PASSADA (sobre "tu" e "você", "o/a" e "lhe") deixou alguns leitores com a seguinte inquietação: o uso dos pronomes "o/a" e "lhe" não é determinado pela "distância", isto é, não está ligado ao fato de falarmos com alguém ou sobre alguém? Em outras palavras, quando se emprega "lhe" ("Eu lhe prometi"), o "lhe" não representa necessariamente o interlocutor?
Não e não, caros leitores. Na língua formal, o "lhe" funciona como complemento indireto e substitui qualquer elemento da terceira pessoa (ele/a, você, senhor/a, o/a diretor/a etc.) regido por preposição.
Para ilustrar um dos pontos do tema, vejamos estes versos de "Anedota Búlgara", de Drummond: "Era uma vez um czar naturalista / Que caçava homens. / Quando lhe disseram que também se caçam...". A quem se refere o "lhe"? O "lhe" não se refere ao interlocutor (que nem há); refere-se ao "czar" ("Quando disseram ao czar" = "Quando disseram a ele" = "Quando lhe disseram"). Nesse caso, o "lhe" funciona como complemento indireto do verbo "dizer" (que rege a preposição "a": dizer algo a alguém).
Para ilustrar outro ponto do tema, tomemos como base estes versos da antológica e mordaz "Apesar de Você" (de 1970), de Chico Buarque: "Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença / E eu vou morrer de rir / Que esse dia há de vir / Antes do que você pensa / Apesar de você...". Direto ao ponto: a quem se refere o "lhe" da passagem "Sem lhe pedir licença"?
Parece claro que o "lhe" se refere ao interlocutor, representado pelo pronome "você", que, por sua vez, representa... Bem, isso é outra história (aliás, o redator do site de Chico Buarque, Wagner Homem, apresenta um belo show com histórias das canções do Mestre -na Livraria da Vila, em São Paulo).
Voltando à canção de Chico, na época muita gente não percebeu que a conversa não era com uma mulher, mas com o general de turno. A passagem que destaquei evidencia bem o escárnio do letrista ao poder absoluto que os militares julgavam ter sobre rigorosamente tudo (imagine só o dia ousar raiar sem pedir licença ao ditador de turno...).
Depois de tocar à exaustão nas rádios de todo o país e de já estar quase no "esquecimento", a canção foi proibida... Raciocínio tardio... Como era ridícula a ditadura, santo Deus! Ridícula, cruel e boçal.
E os pronomes "o/a"? Antes, convém lembrar que estamos vendo o tema sob a ótica do padrão formal da língua. Pois bem. O que se disse sobre o "lhe" se aplica também em relação a "o" e "a": esses pronomes podem substituir qualquer elemento de terceira pessoa (ele/a, você, senhor/a, o/a diretor/a etc.) que funcione como complemento direto, isto é, não regido por preposição.
Veja-se este passo de "Os Desastres de Sofia", de Clarice Lispector: "Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto do ódio daquele homem que de certo modo eu amava". A quem se refere o "o" de "eu o exasperava"?
Esse "o" substitui um personagem (o professor -"aquele homem que de certo modo eu amava") e complementa o verbo "exasperar", que não rege preposição (se alguém exaspera, exaspera alguém).
Por fim, pensemos neste exemplo: "Quem é você? Não o/a conheço; nunca o/a vi antes!". A quem se referem os pronomes "o/a" nas suas duas ocorrências? Referem-se ao interlocutor ("você") e funcionam como complemento dos verbos "conhecer" e "ver", que não regem preposição (se alguém conhece/vê, conhece/vê alguém). É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: CET reduz a velocidade na ligação leste-oeste em abril
Próximo Texto: Atmosfera
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.