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Após inundação, cidade no Maranhão caça água potável
Moradores contraem doenças e tentam limpar casas que estavam submersas
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A TRIZIDELA DO VALE (MA)
O chão de Trizidela do Vale,
município às margens do rio
Mearim, no centro geográfico
do Estado do Maranhão, está
coberto por uma lama pegajosa, quase preta, com um cheiro
forte de alimento estragado.
Gruda no pé.
A maior parte da cidade ainda está sob as águas que, no último dia 4, depois de uma espécie de dilúvio, elevou em seis
metros o nível do rio. Fossas sanitárias, lixo e fezes misturaram-se às chuvaradas e ao leito
do rio, formando um caldo rico
em matéria orgânica. Os 15 mil
flagelados (de uma população
total de 18.500 habitantes) passam a maior parte do dia mergulhados nisso.
Doentes com um catálogo de
doenças dermatológicas, como
furunculose, ptiríase, micoses,
escabiose, pruridos já se contam aos milhares. Segundo a
secretária de Saúde de Trizidela, Ediuene Costa Souza, a situação deve piorar. "Conforme
os dias vão passando, a lama
apodrece e essa tragédia sanitária aumenta o risco de epidemias", disse ela.
A enchente gerou um paradoxo. Apesar do excesso de
água, não há água para beber.
Já não havia água encanada antes, mas poços artesianos davam conta do abastecimento
-agora, a água da maioria deles
está contaminada. A prefeitura
contratou sete carros-pipa para
fornecer água para os moradores. Mas os caminhões não conseguem passar -em muitos lugares, só de barco mesmo.
Os moradores banham-se na
água imunda e bebem água de
chuva, coletada dos telhados.
Cozinham com uma mistura
das duas - "Vai ferver mesmo,
não é?", diz a faxineira Francisca Silva Nel, 19, mãe da menina
Natali Nel da Silva, 2, com quadro de otite e diarreia. A cidade
já conta 608 atendimentos por
otite e 1.500 por diarreia.
Cocheiras
Mãe e filha são parte de 58 famílias que estão alojadas em
um parque de vaquejadas ao
qual agora só se chega de barco.
Moravam perto dali, na rua do
Campo, que encheu. Dividem o
espaço das cocheiras com cavalos de até R$ 40 mil (são usados
para cercar os bois, nas corridas). Mas também com porcos
e porquinhos da criação local e
até com gaiolas de galos de briga. Uma família mora no banheiro masculino do parque.
O local pertence ao ex-prefeito da cidade, Paulo Antonio
Barros da Silva, o Paulo Maratá,
e reúne todos os anos, em julho,
milhares de pessoas em uma
das maiores etapas do circuito
maranhense de vaquejadas.
Distribuem-se R$ 100 mil para
os melhores cavaleiros, apresentam-se algumas das melhores bandas de forró do nordeste. Agora, o palco abriga sete famílias e suas geladeiras, fogões,
móveis, televisores.
"Veio tudo apoiado na cabeça
para não molhar", diz Ruteleine Souza, 39, que levou para a
cocheira a mãe, de 83 anos, o
marido, de 36, o filho, de 8, e
três passarinhos cantadores.
As chuvas de 2009 não assustaram ninguém quando começaram, há quase dois meses. O
inverno na região se caracteriza
exatamente por esses aguaceiros. O pessoal já sabia: Era tempo de "trepar tudo no jirau"
-quer dizer, pendurar móveis,
televisores e até a geladeira a
meia altura entre o chão e o teto das casas.
Mas neste ano foi diferente
do que aconteceu nos últimos
22 anos. Os quatro lagos que
cercam Trizidela, o rio passando no meio, subiram até alcançar o teto das casas em apenas
uma noite. Quem acordou a
tempo, salvou as coisas.
Ruteleine até que não é das
que mais perdeu. Ficaram para
trás uma cama e um colchão.
Mas a mãe dela, Maria Amélia
Mota, não para de chorar, recurvada -não se sabe se é dor
ou tristeza.
Amélia tem medo que sua casa não aguente tanto tempo
mergulhada. Dezenas já racharam, cerca de 15 desabaram.
A aflição dos moradores
-principalmente os mais velhos- é visível pela movimentação onipresente dos rodos e
vassouras e detergentes e desinfetantes. Com o nível das
águas baixando (na sexta-feira,
completavam-se três dias de
estiagem), mulheres e homens
entram nas casas para tentar
limpá-las da lama e secá-las
-retomá-las das águas.
O zelador Manuel Souza de
Oliveira, 27, fez isso. Deixou a
casa cheirosa, mas ainda encharcada. Os barcos motorizados, as chamadas "voadeiras",
jogam ondas de água sobre os
imóveis que, "amolecidos" pelo
molho forçado, sofrem com o
impacto. O problema é tão sério que o prefeito Janio Balé
(PDT) proibiu o tráfego de
"voadeiras" pelas ruas.
O trabalho de limpeza do zelador custou-lhe caro. Uma hora depois da faxina, ele caiu
com uma febre de 40 graus, dor
na cabeça e nos olhos. Ficou
quatro dias internado.
Já apareceram sucuri de quatro metros de comprimento e
uma cobra caninana de 2 metros no meio da rua. Não fizeram nada contra ninguém. O
sargento Marcio Clayton Silva
Bernardo, 35, do Tiro de Guerra, que tem ajudado na distribuição de cestas básicas para os
desabrigados, acha que os répteis não tinham nenhuma "intenção malévola". "Apenas não
sabiam mais onde começava e
onde acabava o lago que era seu
habitat", disse.
Os meninos de Trizidela estão achando a maior graça na
fase anfíbia que a cidade vem
vivendo. Com varas de pescar,
iscas e geladeirinhas, fazem
campeonatos de pesca de rua.
Na sexta-feira, ainda conseguiam pescar pequenos surubins. "Vão para a panela", disse
Anderson de Arruda, 14, risonho, meio corpo enfiado no rio
que virou sua rua.
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