|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
O jogo da Copa, o jogo da vida
Muita gente se dispôs a
assistir o jogo entre Brasil e
Inglaterra. Não o Antônio. Não
tenho tempo para essas coisas,
resmungou, preciso acordar cedo.
E proibiu também a mulher de ligar a TV ou ouvir o rádio: não
queria barulho em casa.
Ela suspirou. Se morassem na
cidade, pelo menos teriam uma
forma indireta de acompanhar a
partida: a torcida após o gol. Mas
não moravam na cidade. Moravam no campo -Antônio era um
pequeno agricultor- e num lugar muito isolado. O único vizinho, num raio de alguns quilômetros, era o Zé Pedro. O Zé Pedro
era fanático por futebol. Ele, sem
dúvida, acompanharia o jogo. E
sem dúvida soltaria foguetes. Zé
Pedro era disso. De modo que a
única esperança dela era agora o
Zé Pedro.
Antônio não gostava do vizinho. Na verdade, estavam brigados. Antônio acusara Zé Pedro de
estar dando em cima de sua
mulher. Ciúmes não sem fundamento -Ritinha era muito bonita-, mas Zé Pedro ficara furioso
e desde então não perdia ocasião
de fazer pirraça. De modo que
Antônio foi dormir, naquela
noite, com desagradáveis pressentimentos.
Lá pelas tantas foi acordado pelo estouro de um foguete. Poderia
ter ligado ou a TV ou o rádio, mas
ainda tonto de sono, voltou a
adormecer. Mais adiante, novo
foguete e um longínquo grito de
vitória: o Zé Pedro.
Às seis da manhã, Antônio levantou. Acho que o Brasil ganhou, disse Ritinha.
Ele não tinha tanta certeza. O
Brasil podia até ter marcado dois
gols. Mas, e se a Inglaterra tivesse
feito três, ou quatro?
Dúvida razoável, mas não era
essa que o atormentava. Era outra. E se o Zé Pedro tivesse soltado
dois foguetes sem que o Brasil
houvesse marcado gols? Ele seria
capaz, sim, de fazer isso. Simplesmente para gozar com o vizinho,
para debochar dele: não enganei
o Antônio com a mulher, mas enganei-o com os foguetes -o trouxa pensa que o Brasil fez dois gols
e o Brasil não fez gol nenhum.
Agora: isso era o que Zé Pedro
faria, ou era o que ele, Antônio,
faria, se estivesse no lugar do Zé
Pedro? Uma resposta poderia revelar a Antônio muita coisa a respeito de si próprio. Mas ele não
queria descobrir nada a respeito
de si próprio. Preferiu ligar o rádio para descobrir o resultado da
partida.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
Texto Anterior: Ouvidor vê falha de promotores Próximo Texto: Maria Maluf será fechado de madrugada Índice
|