São Paulo, sábado, 24 de julho de 2004

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LETRAS JURÍDICAS

Dificuldades para a dosagem das penas

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Embora muita gente não a conheça, a palavra dosimetria tem andado no noticiário de formas diversas. Refere-se ao critério científico de determinar a punição penal conforme a gravidade das condutas puníveis. A punição de 30 anos de reclusão conferida ao atirador do shopping Morumbi, em caso recente muito comentado, provocou intensa reação nas famílias das vítimas. É pouco, queixaram-se parentes ouvidos, alguns dos quais sustentando ser a pena de morte a única satisfatória.
Opinar sob o calor da emoção corresponde à manifestação justa e compreensível pela perda de um ente querido. Acontece que os critérios técnicos não são fáceis de serem determinados na lei e decididos pelo juiz. Ao contrário, são sempre discutíveis. Isso poderá levar algum leitor a contestar a discutibilidade ante a clareza do óbvio: quanto mais grave o crime, mais severa deve ser a pena. Mesmo óbvio, o critério tem aplicação complicada.
Começo por mencionar condutas nas quais até a criminalização desperta dúvidas. O consumo da maconha é o mais evidente, mas há outras controvérsias possíveis. Vejamos o adultério: o homem ou a mulher casados mantêm relação sexual fora do casamento. No Brasil esse comportamento tipifica crime, punido com prisão de até seis meses. Pergunto: o adultério é assunto para a sociedade como um todo ou interessa apenas aos cônjuges? É crime? Na minha opinião não deveria ser, embora a conduta tenha tipo civilmente responsabilizável. Interessa ao casal. Ninguém mais tem alguma coisa com isso, tanto que a lei exige representação do ofendido para processar o adúltero e admite o perdão (Código Penal, artigo 240).
Por outro lado, há crimes com ações heterogêneas, para os quais a gravidade das penas é sujeita a grande variação. Comparemos, por exemplo, a conduta dos acusados de corrupção no Ministério da Saúde com a do roubo à mão armada. O que é mais sério? O interesse dominante na última alternativa é o patrimônio do ofendido. Na questão da saúde, o patrimônio do Estado é atingido, com danos para toda a coletividade. A diversidade de soluções mostra que o bom critério dosimétrico requer a verificação do bem social atingido (vida, saúde, patrimônio, honra, bem público, práticas de justiça).
A avaliação fica relativamente mais fácil quando se trata de crimes contra a vida. Mais fácil, mas não muito. Matar alguém a tiros, numa discussão, não é a mesma coisa que matar alguém por atropelamento num racha. Isso porque o valor da intenção do criminoso é dado essencial. A dosagem das penas depende ainda de fatores que dificultam o enquadramento das ações criminosas, ligados não propriamente à dose punitiva, mas à eficácia da pena. A prisão conforta a cidadania, afastando o criminoso das ruas. Quando volta, porém, ao convívio social, ele está mais escolado para novos delitos. Em geral, está mais perigoso. Dificilmente o condenado sai da cadeia mais qualificado para viver em sociedade.
Em conclusão, inexiste critério para abarcar todas as alternativas desejáveis, as quais tendem a variar no curso do tempo. Nenhum país civilizado conseguiu resolver definitivamente qual a punição apta a produzir o melhor efeito permanente em cada crime para punir o delinqüente e, ao mesmo tempo, desestimular delitos semelhantes. O esforço permanente para acertar soluções é impulsionado pela pressão social, impondo a cada cidadão o dever de participar do aperfeiçoamento do mecanismo punitivo. A recusa da participação é um modo de estimular a criminalidade.


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