São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

"Este", "aquele" e "embora"

Na última terça-feira, mestre Clóvis Rossi fez estas observações em sua prestigiada coluna: "No mercado (...), a lógica é mais ou menos assim: se Lula já está eleito, mas só começa a governar no dia 1º de janeiro (se a data de posse não for alterada), o que podemos cobrar dele? Resposta -de resto óbvia: nomes. E nomes bem específicos: o do ministro da Fazenda e o do presidente do Banco Central (há quem diga que este é mais importante do que aquele, embora seja da alçada do ministro nomear e demitir o presidente do BC, e não o inverso)".
Pergunto-lhe, caro leitor: quem é "este" e quem é "aquele", ou seja, quem é mais importante (na visão de quem compõe o "há quem diga")? Parece claro que na visão dessas pessoas o presidente do BC é mais importante do que o ministro da Fazenda.
Como se chega a essa conclusão? Pelos pronomes "este" e "aquele". Quando se citam dois elementos, retoma-se o último, ou seja, o mais próximo, pelo pronome "este" (ou "esta", "estes", "estas"). O primeiro elemento citado, isto é, o mais distante, é retomado por "aquele" (ou "aquela" etc.).
No texto de Rossi, o último dos dois elementos citados é o presidente do BC, retomado por "este". "Aquele", portanto, só pode ser o ministro, mais distante.
O que temos aí é um dos clássicos expedientes de coesão textual. Que é isso? Recentemente, uma leitora me procurou, preocupada com o fato de que, do programa do concurso público de que participaria, constavam os mecanismos de coesão e de coerência.
"Que é isso, professor?", perguntou-me, aflita, a leitora. Um texto é coeso (os dicionários dizem que a pronúncia culta é "coéso"; use-a, se tiver coragem) quando suas partes são ligadas de tal modo que não seja preciso voltar e reler para que se saiba de quem ou de que se fala. No trecho de Rossi, há um exemplo de coesão feita com o emprego adequado de elementos anafóricos (aqueles que se referem a termos já citados).
Aparentemente banal, o emprego dos anafóricos muitas vezes deixa confuso o leitor. Basta que se use mal um "ele", um "o" ou um "que", por exemplo, para que não se saiba de quem se fala. Em "O pai do diretor, que prometeu resolver o problema...", por exemplo, a quem se refere o "que"?
Voltando ao trecho de Rossi, vale a pena lembrar que, levando em conta o uso de "embora", pode-se confirmar a quem se referem os pronomes "este" e "aquele". Vejamos: "...embora seja da alçada do ministro nomear e demitir o presidente do BC". Ora, se foi bem empregada, a conjunção "embora" contrapõe duas idéias: o ministro da Fazenda nomeia e demite o presidente do BC, embora seja menos importante do que seu "subalterno" (na visão de certas pessoas, é bom que se diga).
Pronto, Sara (a leitora que me procurou)! Você acaba de ver um (bom) exemplo de coerência textual. Também aparentemente banal, o emprego dos elementos que estabelecem o nexo entre as idéias derruba muita gente. Não é por acaso que os vestibulares de ponta têm insistido nisso, sobretudo para exigir dos candidatos a percepção de determinadas contradições decorrentes do mau emprego de palavras e expressões como "embora", "portanto", "exceto", "mas", "sem que" etc. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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