São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2010

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De Mateus para Alcione

"Falam que eu tenho tendências esquizóides e que o ato que cometi foi fruto de agressividade íntima"

ELIANE TRINDADE
DE SÃO PAULO

"Querida Alcione". Assim Mateus Meira saudava Antonio Alcione Carvalho em cartas enviadas de três presídios de São Paulo. O destinatário viveu a fantasia de um romance epistolar, alimentado a decalques infantis e desenhos de corações flechados. "Sou seu amiguinho", escrevia o atirador do shopping.
Alcione respondia com mensagens apaixonadas e dedicação. Mateus não revela sentimentos pelo correio. Em nenhum trecho da meia centena de cartas há sinal de arrependimento pelo crime.
Em 17 de junho de 2001, desdenha dos psiquiatras: "Falam que eu tenho tendências esquizóides e que o ato que cometi foi fruto de agressividade íntima." Vangloria-se de sua posição social: "Esse é o preço do ensino superior. Se eu não tivesse o 1º grau, estaria num hospício."

"EU METRALHEI"
Sob a lupa da psicanalista Luciana Saddi cresce a imagem de um assassino frio. "Quando Mateus diz "Eu metralhei", não passa arrependimento", diz. "Para se defender do horror que praticou, ele banaliza o que fez para tirar a intensidade do ato."
Atitude evidente na carta de 15 de maio de 2001: "Alcione, fale-me mais de sua vida. Por que você se apaixonou por mim depois que eu metralhei o pessoal no cinema?"
Mateus é mais sensível às limitações da vida na cadeia. Especialmente, quando foi para Avaré, presídio de segurança máxima. "Você fica impossibilitado de fazer um monte de coisa." Sugere a Alcione que veja "Papillon" (1973), filme que retrata uma prisão degradante e brutal. "É mais ou menos aquilo ali, só que menos cruel."
Após introduções cada vez mais impessoais, Mateus incumbia Alcione de achar amigos, advogados e até de movimentar sua conta. "Você me ama e precisa fazer isso." Pede que compre um celular e pague R$ 1.000 para que o aparelho entre no presídio. Não foi atendido.
Chega a pedir R$ 300 mil. "Não é tanto assim", pontua, certo de sair da prisão se tiver os "melhores criminalistas". Em 7 de julho de 2002, escreve: "Meu alvará de soltura é certo. Você quer que eu seja solto? Então, arranje dinheiro logo, pombas."

A SECRETÁRIA
No começo, os pedidos eram banais: revistas, envelopes e material de higiene. "Mateus só pedia coisas caras. O perfume era bom; o leite, de marca. Coisa de menino enjoado", lembra Alcione. "Gastei mais que trocados com ele: uns R$ 12 mil."
Entra em cena a porção feminina de Alcione. "Pensando como mulher, ela acha que, se o salvar, ele será dela", avalia Luciana. "A transexual tem a vivência de mulher e se comporta como tal."
A missão redentora foi forjada com doces palavras, entremeadas a ordens secas. A irritação, por vezes, era clara: "Já sei que você me ama, mas não precisa ficar repetindo."
Alcione obedecia. Em 8 de setembro de 2001, recebeu uma engenhosa receita prescrita por Mateus para conseguir Rivotril, um calmante tarja preta, na cadeia.
"Querida Al", começa ele mais carinhoso que o habitual. "Quero que você faça uma mistura. Ninguém mais pode fazer isso por mim. 1) Ingredientes: 400 g de leite em pó DESNATADO. 2) 200 comprimidos de Rivotril 1 mg." Dá instruções de preparo e calcula os gastos. Depois, agradece a encomenda enviada por Sedex.
Para atingir seus objetivos, lançava mão de truques de sedução. Escrevia que Alcione era uma "heroína", listava suas preferências musicais. "Gostou dos Cranberries?", indaga ele sobre a banda irlandesa. "Ouça a banda Catatonia. É do País de Gales", sugere, arrematando com coração flechado.
"Ele é esperto, usa símbolos dos apaixonados para em seguida mandar a lista imensa de demandas", observa a psicanalista. "Enquanto Alcione idealiza um amor, ele tira tudo o que ela tem, como se a matasse aos poucos."
Quando é contrariado, Mateus fica agressivo. "Alcionizinha, na próxima carta ou sedex, responda-me prolixamente.. Senão vou mandar você para aquele lugar, seu esquizofrênico do car...!", ameaça em maio de 2002.

DESEJOS
No começo, a indefinição sexual de Alcione era motivo de curiosidade. "Você não acha que um travesti, bem feminino, que se parece realmente com uma mulher lindíssima, que afaste qualquer dúvida de que seja mesmo uma mulher, não desperta desejos subconscientes num homem?", indaga Mateus, em 29 de julho de 2001.
Ele prossegue no tema: "Vou confessar que passeando de madrugada com o meu Chrysler, sob efeito de estimulantes, já fiquei confuso algumas vezes."
Foi um Mateus bem seguro que fez um retrato psicológico de Alcione, em 4 de junho de 2002: "Envio esta carta para ajudá-la. Mostre-a ao seu analista. Você é ou está extremamente doente. Devido à sua personalidade ou a uma das suas personalidades, você desenvolveu esse amor platônico completamente absurdo, fanático, doentio."
Mateus coloca-se como vítima de uma idealização. "Eu gostaria imensamente, tenho que fazer isso para o seu bem, que você sumisse da minha frente para sempre." Termina com um "até nunca mais". Blefe. As cartas cessaram um ano depois.


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