São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2010

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MINHA HISTÓRIA GERALDO RODRIGUES NETO, 56

Recriando no escuro

(...)Percebi que tinha ficado cego. Vomitei na privada, no chão, no lavatório, no box, na pia. Tinha medo (...) Fui demitido. Tinha três filhos para sustentar

Marisa Cauduro/ Folhapress
Geraldo Rodrigues Neto com seu labrador

RESUMO Em 1990, o publicitário gaúcho Geraldo Rodrigues Neto foi demitido de seu emprego por conta de uma grave deficiência na visão. Dez anos mais tarde, ficou completamente cego. Portador da síndrome de VHL (Von Hippel-Lindau), ele convivia com a dificuldade de enxergar desde a infância. As dificuldades não o impediram de continuar trabalhando. Hoje, aos 56 anos, com sua própria agência, soma 123 prêmios e ainda produz peças publicitárias para diversas empresas. Ele é autor de uma das famosas campanhas da bala soft. E ainda criou um peça para o Banco de Olhos de SP.

(...) Depoimento a
AFONSO BENITES
DE SÃO PAULO

A minha dificuldade em enxergar começou aos 3 anos, quando minha mãe percebeu que aproximava muito as coisas dos olhos. Ela me levou ao médico, mas era tarde. Havia perdido a visão do olho direito.
A partir daí, todo o trabalho foi para preservar o olho esquerdo. Fiz exames desconfortáveis para um garoto. Quando saía do médico, em Porto Alegre, minha mãe me levava a uma confeitaria para pagar uma banana split e compensar o sofrimento. Mas não compensava.
Numa das crises, com minha mãe assustada porque tinha risco da perda total da visão, fomos ao Rio de Janeiro. Na época, tinha 9 anos.
Passei por uma cirurgia. O laser usado depois, no tratamento, doía muitíssimo. Porém, queria garantir os 30% de visão do olho esquerdo.
A dificuldade em enxergar nunca foi impedimento para ser o publicitário que sou. Não fiz faculdade. Comecei aos 18 anos como revisor. Depois redator, supervisor de criação, diretor de criação e vice-presidente de criação de uma agência multinacional.
Recebi 123 prêmios nacionais e internacionais, 23 deles depois de ficar totalmente cego, há dez anos. Ganhei o Leão de Ouro de Cannes.
Ocorre que, aos 37 anos, estava no Ibirapuera quando a visão do olho esquerdo deu uma flutuada. Era como mergulhar numa piscina. Havia 10% de chances de enxergar.
Viajei aos EUA. Gastei o que tinha e o que não tinha.

DEMISSÃO
No retorno, depois de dois dias em casa, voltei ao trabalho. Na minha sala não tinha mais nada meu, nem meus quadros, nem minhas fotos, nem minha luminária. Entrei na sala do chefe, ele disse que não reassumiria mais.
"Os nossos clientes ficam constrangidos com sua deficiência. Você não tem mais condição de avaliar o resultado final do trabalho", ele disse. Fui demitido assim. Tinha três filhos para sustentar.
Não desisti. Sempre criei e continuo criando comerciais para a televisão.
A visão estética não é externa, é interna. Ainda tenho o registro de um córtex visual. Sei o que é um azul, um preto, um vermelho. Mas não é só isso, é sentimento.

VÔMITOS
Em 7 de setembro de 2000, aos 46 anos, morava sozinho após a separação. Saí do banho e achei que havia muito vapor. Abri a janela e só ouvi os ruídos dos carros. Não via absolutamente nada.
Percebi que tinha ficado cego. Vomitei na privada, no chão, no lavatório, no box, na pia. Tinha medo. Não sabia o que ia acontecer. Chorei porque tinha me dado conta que não tinha mais o que fazer. Tinha acabado. A sensação era de que eu ia morrer.

PERDAS E GANHOS
Imediatamente após perder a visão começa uma contabilidade que consiste em entender e aceitar. Nenhuma das duas coisas é fácil. Surge a pergunta: "por que eu?"
Depois você pensa nas perdas e ganhos. Existem ganhos. O primeiro é que você entendeu e aceitou uma grande perda. Que você sobreviveu. Isso faz de você um homem mais forte, um cara mais preparado. Tu descobres teus pares, tuas vaidades. Ganha até algumas facilidades: não pago o ônibus, não pego fila no banco, entro primeiro no teatro.
O ganho maior é o existencial. Ao mesmo tempo em que tu te descobres limitado, descobres também que podes cortejar o limite.
A minha grande dor em muitos momentos é não poder ver o rosto dos meus filhos. Mas também não vejo a cara feia de muita gente.
Têm duas armadilhas importantes também. A tendência é achar-se um coitado ou um ET. Dizem que você tem uma sensibilidade incomum, mas é mentira. Tu tens a tua capacidade o teu talento e o que determina isso não é o fato de você enxergar.

CÂNCER
Não sou hipócrita, já fui, sei que sou uma referência. Por que? Porque sobrevivi. Sou dono de duas empresas, emprego diretamente 20 pessoas. Como bem, vivo bem, viajo. Fala-se muito de inclusão e não existe ninguém mais incluso do que eu.
Fui diagnosticado bipolar de um nível suave, tomo medicação, e tive um câncer de tireoide. Tirei a tireoide.
Tem um texto de Bertold Brecht que diz: "Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis".
Eu me considero indispensável. Também não acredito na deficiência.
Somos todos iguais.


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