São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

São Paulo privatiza espaço público, critica urbanista

Reforma da rua Avanhandava é um retrocesso histórico, diz Re gina Meyer, da USP

Segundo ela, obras feitas pela iniciativa privada podem fazer com que a prefeitura abandone suas prerrogativas de organizar a cidade

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Se quiser agradá-la, não convide a urbanista e arquiteta Regina Meyer para conhecer a "nova" rua Avanhandava, redesenhada por um dono de restaurantes. Professora titular da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP e coordenadora do Lume (Laboratório de Urbanismo da Metrópole), Meyer vê ruas como a Avanhandava e a Oscar Freire como um retrocesso histórico. "Espaços de excelência bancados pela iniciativa privada são completamente equivocados. Isso pode levar a uma situação sem retorno de apropriação do espaço público", diz. A razão do retrocesso, segundo ela, é que a prefeitura abandona suas prerrogativas de organizar a cidade. Essa omissão não tem final feliz, como ela conta nesta entrevista:

 

FOLHA - O que a sra. acha da política da prefeitura de permitir que comerciantes reformem certas ruas?
REGINA MEYER
- Se a gente imaginar isso em larga escala na cidade, é um total desacerto. Você passa para o setor privado algo que é prerrogativa do poder público: normatizar, organizar e zelar pelo espaço público.

FOLHA - Dá para falar em privatização do espaço público?
MEYER
- Ocorre uma apropriação. Mas, se levarmos isso para a escala urbana, vamos ter uma cidade feita de interesses específicos. Se uma área não tem condições de fazer a reforma, vai virar um enquistamento de problemas. Se o poder público não tem orçamento para isso, é preciso procurar alternativas, até de taxação. Espaços de excelência bancados pela iniciativa privada são completamente equivocados. Isso pode levar a uma situação sem retorno de apropriação do espaço público.

FOLHA - Os defensores desse modelo dizem que, com o investimento privado, a prefeitura poupa recursos para investir na periferia.
MEYER
- A melhoria da periferia não pode se dar com esse argumento. Precisamos ter projetos para o espaço público. Não podemos construir avenidas como a nova Faria Lima, feita exclusivamente para o automóvel. O que a gente tem feito em São Paulo é construir espaços para desafogar o trânsito, mas sem qualificar a cidade. O metrô precisa melhorar o espaço por onde passa.

FOLHA - Isso acontece?
MEYER
- O metrô mudou muito. Na década de 70 ele passava de maneira bastante brutal pela cidade. A demolição da praça da Sé, do edifício Santa Helena, foi um marco. A partir dali o metrô mudou suas características. A Estação São Bento é uma coisa esperada -espera-se que o metrô passe pela cidade como uma onda de qualificação. O metrô não pode ter uma lógica de transporte, mas urbanística.

FOLHA - Quando as avenidas passaram a ter lógica de transporte?
MEYER
- A Faria Lima foi um susto para mim. Na placa estava escrito avenida, mas eu tinha a impressão de estar passando por uma rodovia. Não precisa ser um bulevar parisiense, mas avenida precisa de calçadas largas, de iluminação. No caso da avenida Tiradentes, no final dos anos 80 e começo dos 90, assistimos à colocação de "guard rail", um equipamento de rodovia dentro da cidade. A Tiradentes já foi uma avenida linda, com árvores no meio de uma ilha larga e essa imensa escultura que está aqui na USP. Isso tudo se perdeu.

FOLHA - A prefeitura sempre diz que faz isso para melhorar a cidade.
MEYER
- Essas avenidas foram impactando o centro, como se ele tivesse que ceder seu espaço para todas essas avenidas. O Minhocão é o atestado da nossa incapacidade de pensar que um sistema de vias expressas requer diálogo com a cidade já existente. O centro de São Paulo é o resultado de dezenas de obras feitas sem preocupação com o local por onde passava. Felizmente, o diálogo que o metrô mantém com a cidade é mais sério. O largo da Batata vai ganhar com a estação. Isso é o oposto do fechamento de ruas para evitar a entrada de pessoas consideradas indesejáveis.

FOLHA - Não há um retrocesso histórico nesse movimento?
MEYER
- É um retrocesso histórico -a vida urbana e o espaço público vão desaparecendo. As pessoas tentam criar o efeito túnel: saem da garagem de casa para a garagem do local que vão. O resto você ignora. Daqui a 50 anos, podemos ter uma cidade destituída da essência daquilo que é a urbanidade, que é o espaço público. Cada vez mais você encontra um número menor de pessoas. No Anhangabaú dos anos 50, havia conjugação de classes, de interesses, de pessoas vestidas de formas distintas. Isso está cada vez mais difícil. A cidade virou o território da não mistura.

FOLHA - As prefeituras de Berlim e San Francisco, nos EUA, usam recursos privados. Esses modelos podem ser reproduzidos aqui?
MEYER
- Basta que o poder público seja o agente produtor do projeto. Um trecho de rua não pode ser propriedade de quem mora ali. A prefeitura não pode dar ao interesse privado a prerrogativa de projetar o espaço público. Se fizer isso, a rua passa a ser privatizada. Se você põe um vaso para a entrada triunfal numa rua, você cria uma situação nova da qual alguns se beneficiam um pouco e outros se beneficiam muito. Você pode perguntar: "Mas que mal há nisso?"

FOLHA - Que mal há nisso?
MEYER
- Você abre para especificidades, e o poder público tem de garantir padrões.

FOLHA - Esse processo pode inviabilizar a idéia de cidade?
MEYER
- Já estamos no processo de inviabilizar a idéia de urbanidade, de espaço público. Você começa a ter a atomização desses interesses. As PPPs (Parceria Público-Privada) são uma forma de viabilizar a parceria porque o projeto é iniciativa do poder público. Com essas ruas de São Paulo, houve uma inversão. O sujeito entra com o dinheiro e é como se essa rua fosse minha. A rua não é minha, é nossa, e sendo nossa o poder público tem a obrigação de criar padrões que deveriam ser almejados pela cidade inteira. É isso que torna a cidade reconhecível por todos. A idéia de uma boa cidade é a cidade equivalente. É uma cidade em que todas as ruas teriam recolhimento de água pluvial, calçadas, arborização. É uma cidade menos desigual. A equivalência vem da maneira como o poder trata o espaço público.


Texto Anterior: Entidade pede que manutenção seja constante
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.