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São Paulo privatiza espaço público, critica urbanista
Reforma da rua Avanhandava é um retrocesso histórico,
diz Re gina Meyer, da USP
Segundo ela, obras feitas
pela iniciativa privada podem
fazer com que a prefeitura
abandone suas prerrogativas
de organizar a cidade
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Se quiser agradá-la, não convide a urbanista e arquiteta Regina Meyer para conhecer a
"nova" rua Avanhandava, redesenhada por um dono de restaurantes. Professora titular da
FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP e coordenadora do Lume (Laboratório de Urbanismo da Metrópole), Meyer vê ruas como a Avanhandava e a Oscar Freire como um retrocesso histórico.
"Espaços de excelência bancados pela iniciativa privada
são completamente equivocados. Isso pode levar a uma situação sem retorno de apropriação do espaço público", diz.
A razão do retrocesso, segundo ela, é que a prefeitura abandona suas prerrogativas de organizar a cidade. Essa omissão
não tem final feliz, como ela
conta nesta entrevista:
FOLHA - O que a sra. acha da política da prefeitura de permitir que comerciantes reformem certas ruas?
REGINA MEYER - Se a gente imaginar isso em larga escala na cidade, é um total desacerto. Você passa para o setor privado algo que é prerrogativa do poder
público: normatizar, organizar
e zelar pelo espaço público.
FOLHA - Dá para falar em privatização do espaço público?
MEYER - Ocorre uma apropriação. Mas, se levarmos isso para
a escala urbana, vamos ter uma
cidade feita de interesses específicos. Se uma área não tem
condições de fazer a reforma,
vai virar um enquistamento de
problemas. Se o poder público
não tem orçamento para isso, é
preciso procurar alternativas,
até de taxação. Espaços de excelência bancados pela iniciativa privada são completamente
equivocados. Isso pode levar a
uma situação sem retorno de
apropriação do espaço público.
FOLHA - Os defensores desse modelo dizem que, com o investimento
privado, a prefeitura poupa recursos
para investir na periferia.
MEYER - A melhoria da periferia não pode se dar com esse argumento. Precisamos ter projetos para o espaço público.
Não podemos construir avenidas como a nova Faria Lima,
feita exclusivamente para o automóvel. O que a gente tem feito em São Paulo é construir espaços para desafogar o trânsito,
mas sem qualificar a cidade. O
metrô precisa melhorar o espaço por onde passa.
FOLHA - Isso acontece?
MEYER - O metrô mudou muito. Na década de 70 ele passava
de maneira bastante brutal pela cidade. A demolição da praça
da Sé, do edifício Santa Helena,
foi um marco. A partir dali o
metrô mudou suas características. A Estação São Bento é uma
coisa esperada -espera-se que
o metrô passe pela cidade como
uma onda de qualificação. O
metrô não pode ter uma lógica
de transporte, mas urbanística.
FOLHA - Quando as avenidas passaram a ter lógica de transporte?
MEYER - A Faria Lima foi um
susto para mim. Na placa estava escrito avenida, mas eu tinha
a impressão de estar passando
por uma rodovia. Não precisa
ser um bulevar parisiense, mas
avenida precisa de calçadas largas, de iluminação. No caso da
avenida Tiradentes, no final
dos anos 80 e começo dos 90,
assistimos à colocação de
"guard rail", um equipamento
de rodovia dentro da cidade. A
Tiradentes já foi uma avenida
linda, com árvores no meio de
uma ilha larga e essa imensa escultura que está aqui na USP.
Isso tudo se perdeu.
FOLHA - A prefeitura sempre diz
que faz isso para melhorar a cidade.
MEYER - Essas avenidas foram
impactando o centro, como se
ele tivesse que ceder seu espaço
para todas essas avenidas. O
Minhocão é o atestado da nossa
incapacidade de pensar que um
sistema de vias expressas requer diálogo com a cidade já
existente. O centro de São Paulo é o resultado de dezenas de
obras feitas sem preocupação
com o local por onde passava.
Felizmente, o diálogo que o
metrô mantém com a cidade é
mais sério. O largo da Batata vai
ganhar com a estação. Isso é o
oposto do fechamento de ruas
para evitar a entrada de pessoas
consideradas indesejáveis.
FOLHA - Não há um retrocesso histórico nesse movimento?
MEYER - É um retrocesso histórico -a vida urbana e o espaço
público vão desaparecendo. As
pessoas tentam criar o efeito
túnel: saem da garagem de casa
para a garagem do local que
vão. O resto você ignora. Daqui
a 50 anos, podemos ter uma cidade destituída da essência daquilo que é a urbanidade, que é
o espaço público. Cada vez mais
você encontra um número menor de pessoas. No Anhangabaú dos anos 50, havia conjugação de classes, de interesses, de
pessoas vestidas de formas distintas. Isso está cada vez mais
difícil. A cidade virou o território da não mistura.
FOLHA - As prefeituras de Berlim e
San Francisco, nos EUA, usam recursos privados. Esses modelos podem
ser reproduzidos aqui?
MEYER - Basta que o poder público seja o agente produtor do
projeto. Um trecho de rua não
pode ser propriedade de quem
mora ali. A prefeitura não pode
dar ao interesse privado a prerrogativa de projetar o espaço
público. Se fizer isso, a rua passa a ser privatizada. Se você põe
um vaso para a entrada triunfal
numa rua, você cria uma situação nova da qual alguns se beneficiam um pouco e outros se
beneficiam muito. Você pode
perguntar: "Mas que mal há
nisso?"
FOLHA - Que mal há nisso?
MEYER - Você abre para especificidades, e o poder público tem
de garantir padrões.
FOLHA - Esse processo pode inviabilizar a idéia de cidade?
MEYER - Já estamos no processo de inviabilizar a idéia de urbanidade, de espaço público.
Você começa a ter a atomização
desses interesses. As PPPs
(Parceria Público-Privada) são
uma forma de viabilizar a parceria porque o projeto é iniciativa do poder público. Com essas ruas de São Paulo, houve
uma inversão. O sujeito entra
com o dinheiro e é como se essa
rua fosse minha. A rua não é
minha, é nossa, e sendo nossa o
poder público tem a obrigação
de criar padrões que deveriam
ser almejados pela cidade inteira. É isso que torna a cidade reconhecível por todos. A idéia de
uma boa cidade é a cidade equivalente. É uma cidade em que
todas as ruas teriam recolhimento de água pluvial, calçadas, arborização. É uma cidade
menos desigual. A equivalência
vem da maneira como o poder
trata o espaço público.
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