São Paulo, segunda-feira, 25 de março de 2002

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MOACYR SCLIAR

Hermano, irmão

O dólar disparou 19,2% e fechou cotado a 3,10 pesos.
Dinheiro, 23.mar.2002

Os dois eram húngaros, de Budapeste. Os dois eram irmãos. E, desde a infância, os dois brigavam constantemente. Brigavam por livros, por brinquedos, por tudo. E às vezes ficavam meses sem se falar.
Terminada a Segunda Guerra, os pais resolveram mandar os dois -àquela altura um tinha 13 anos, o outro, 15 -para a América Latina. A situação na Hungria era desesperadora, e emigrar poderia ser a única chance de uma vida melhor. Havia dois destinos possíveis: Argentina e Brasil. O irmão mais velho, que se gabava de ser mais bem informado, disse que deveriam ir para a Argentina: um país mais parecido com a Europa e, além disso, em melhor situação econômica. O mais moço discordou: queria o Brasil (samba, mulata, praias, futebol). Os pais, aflitos, tentaram fazer com que os filhos chegassem a um acordo, mas não houve jeito. E, assim, os rapazes se separaram.
Trabalhadores infatigáveis, inteligentes, os dois melhoraram de vida, um na indústria, outro no comércio. Àquela altura, os pais já haviam falecido, de modo que a família agora se resumia aos dois. Periodicamente se encontravam -ora em Buenos Aires, ora em São Paulo. E periodicamente se revezavam no que era a ocupação preferida de ambos: contar vantagem. Nós estamos muito melhor do que vocês era a frase que, alternadamente, usavam. Na década de 90, o irmão argentino parecia ter consolidado sua superioridade: vinha seguido a São Paulo e comprava de tudo pelo sistema "dame dos", dá-me dois: dois ternos, dois computadores, dois carros. O mais jovem acabou se irritando com isso. Brigaram, romperam relações e, pelo resto da década, não se falaram.
Aí o peso desabou. A cotação em relação ao dólar tornou-se inferior à do real. Triunfante, o brasileiro viu nisso um sinal do Destino: tinha de ir a Buenos Aires e devolver ao irmão as zombarias. E seria também uma oportunidade para que se reconciliassem.
Tomou o avião, chegou à capital portenha e foi direto para o prédio onde o irmão, solteirão empedernido, morava. O porteiro do prédio reconheceu-o e abraçou-o. Meus pêsames, disse, com voz embargada.
O irmão argentino falecera no dia anterior. De tristeza, sem dúvida, tristeza e revolta. Com a crise, perdera tudo o que possuía.
O irmão enlutado ficou em Buenos Aires três dias, colocando as coisas do falecido em ordem. Quando já ia partir, apareceu um advogado: vinha cobrar uma dívida. Com a qual o sobrevivente teria de arcar.
Ele pagou, naturalmente. Não por causa da ameaça, mas, sim, porque, como disse depois à esposa (brasileira), em qualquer país, com qualquer moeda, mesmo desvalorizada, irmão é irmão.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal




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