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MOACYR SCLIAR
Hermano, irmão
O dólar disparou 19,2% e fechou cotado a 3,10 pesos.
Dinheiro, 23.mar.2002
Os dois eram húngaros, de
Budapeste. Os dois eram irmãos. E, desde a infância, os dois
brigavam constantemente. Brigavam por livros, por brinquedos,
por tudo. E às vezes ficavam meses sem se falar.
Terminada a Segunda Guerra,
os pais resolveram mandar os
dois -àquela altura um tinha 13
anos, o outro, 15 -para a América Latina. A situação na Hungria
era desesperadora, e emigrar poderia ser a única chance de uma
vida melhor. Havia dois destinos
possíveis: Argentina e Brasil. O irmão mais velho, que se gabava de
ser mais bem informado, disse
que deveriam ir para a Argentina: um país mais parecido com a
Europa e, além disso, em melhor
situação econômica. O mais moço
discordou: queria o Brasil (samba, mulata, praias, futebol). Os
pais, aflitos, tentaram fazer com
que os filhos chegassem a um
acordo, mas não houve jeito. E,
assim, os rapazes se separaram.
Trabalhadores infatigáveis, inteligentes, os dois melhoraram de
vida, um na indústria, outro no
comércio. Àquela altura, os pais
já haviam falecido, de modo que
a família agora se resumia aos
dois. Periodicamente se encontravam -ora em Buenos Aires, ora
em São Paulo. E periodicamente
se revezavam no que era a ocupação preferida de ambos: contar
vantagem. Nós estamos muito
melhor do que vocês era a frase
que, alternadamente, usavam.
Na década de 90, o irmão argentino parecia ter consolidado sua
superioridade: vinha seguido a
São Paulo e comprava de tudo pelo sistema "dame dos", dá-me
dois: dois ternos, dois computadores, dois carros. O mais jovem
acabou se irritando com isso. Brigaram, romperam relações e, pelo
resto da década, não se falaram.
Aí o peso desabou. A cotação
em relação ao dólar tornou-se inferior à do real. Triunfante, o brasileiro viu nisso um sinal do Destino: tinha de ir a Buenos Aires e
devolver ao irmão as zombarias.
E seria também uma oportunidade para que se reconciliassem.
Tomou o avião, chegou à capital portenha e foi direto para o
prédio onde o irmão, solteirão
empedernido, morava. O porteiro
do prédio reconheceu-o e abraçou-o. Meus pêsames, disse, com
voz embargada.
O irmão argentino falecera no
dia anterior. De tristeza, sem dúvida, tristeza e revolta. Com a crise, perdera tudo o que possuía.
O irmão enlutado ficou em Buenos Aires três dias, colocando as
coisas do falecido em ordem.
Quando já ia partir, apareceu um
advogado: vinha cobrar uma dívida. Com a qual o sobrevivente
teria de arcar.
Ele pagou, naturalmente. Não
por causa da ameaça, mas, sim,
porque, como disse depois à esposa (brasileira), em qualquer país,
com qualquer moeda, mesmo
desvalorizada, irmão é irmão.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal
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