São Paulo, quinta-feira, 25 de março de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

Padrão ou não-padrão?

Na cada vez mais bela Lisboa, perto da Torre de Belém, dos Jerónimos, da "Única Fábrica de Pastéis de Belém" e de outras maravilhas, há um monumento dedicado a boa parte dos grandes nomes da gloriosa história de Portugal. O nome desse monumento é "Padrão do Descobrimento". "Padrão" (alteração de "pedrão", aumentativo de "pedra") é o nome que os portugueses davam aos monumentos e marcos pétreos que costumavam erguer nas terras que descobriam.
No cada vez mais complicado Brasil, os agentes da Polícia Federal estão em pleno exercício da "operação padrão". Não, caro leitor, os agentes federais não estão a erguer monumentos em terras que não param de descobrir. Estão simplesmente a fazer o que nem sempre podem fazer: fiscalização completa, pente-fino etc.
Pois bem, caro leitor, permita-me perguntar (afinal, perguntar não ofende): essa operação é padrão ou não-padrão? Não, você não está em coluna errada, não. Meu assunto continua sendo a língua. O que quero é mostrar como se podem usar as palavras de acordo com as circunstâncias, como se pode dar a coisas ou fatos o nome mais conveniente ou ainda como nomes que deveriam ser normais parecem anormais.
Se por "padrão" se entende o que está na lei, a operação que a PF está a fazer é padrão; se se entende o que é praxe, costumeiro, a operação é não-padrão. O fato é que o nome parece mesmo despiste ou conversa para boi dormir.
No fundo, no fundo, esse caso esconde uma questão típica da cultura e da realidade brasileiras: o cumprimento da lei funciona sempre como ameaça ("Ou você me dá o que quero ou eu cumpro a lei, fiscalizo rigorosamente, puno etc."). Triste, não?
Essa inversão "normal/anormal" ou "padrão/não-padrão" não é rara entre nós. Em São Paulo, por exemplo, existe o rodízio municipal de veículos. Às vezes, por motivos de força maior (chuva, greve no metrô etc.), os motoristas são dispensados do cumprimento do rodízio. No rádio, o repórter informa: "Os carros com placa de final X ou Y podem circular normalmente". Normalmente ou anormalmente? Afinal, naquele dia da semana é normal ou anormal que circulem?
Não podemos esquecer o eufemismo, processo pelo qual o nome "verdadeiro" é trocado por um mais suave. Os mais velhos certamente se lembram do Plano Cruzado, do Plano Verão e de outras prestidigitações econômicas por que este país passou em tempos não muito distantes. Num deles (no Verão, se não me engano), previam-se duas fases para os preços: a) congelamento; b) flexibilização. Em bom português, "flexibilização" nada mais é que um eufemismo para "aumento".
Nossa tradição no assunto "enrolação oficial" é sólida. Há 20 ou 30 anos, os proprietários de automóveis tinham de pagar a TRU, sigla cujo significado era "Taxa Rodoviária Única". O detalhe: não era única (havia pedágio, imposto sobre os combustíveis para a construção e conservação de rodovias etc.). E o que dizer do P ("Provisória") de CPMF?
Embora existam para simplificar, algumas siglas (especialmente as oficiais) acabam funcionando como verdadeiras máscaras, já que quase sempre nos acostumamos a elas sem pensar no que efetivamente significam. Comentários sobre o resultado disso parecem dispensáveis. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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