São Paulo, quinta-feira, 25 de março de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

"É que a teia, de espalhada..."


Em "De muito gorda a porca já não anda", o que a expressão "de muito gorda" indica sobre o fato de a porca já não andar?

SEMPRE QUE ESCREVO sobre poemas ou letras da nossa música, recebo ternas mensagens dos meus queridos leitores -a maior parte me pede mais e mais colunas sobre a intrigante confluência entre a gramática e a compreensão dos textos. Para muitos, quando "traduzo" o fato linguístico e, com isso, o próprio texto em foco, abrem-se portas até então indevassadas.
Como dizia o caro e saudoso Mestre João Alexandre Barbosa, a fruição do texto literário supõe o domínio de duas linguagens: o código (= língua) em que o texto foi escrito e a linguagem própria da literatura.
Alguns leitores chegam a ficar "bravos" comigo quando (como na semana passada) escrevo algo como "Mas voltemos ao rés do chão, ou seja, à gramática". "Mas como assim?", perguntou a querida leitora Marilza S. Almeida Jota, de Belo Horizonte.
Pois bem. Quando me sentei diante do computador para escrever esta coluna, vi-me diante do velho e inexorável impasse: escrever sobre o quê? Lembrei-me dos apelos dos leitores e resolvi atender ao pedido de uma lente querida, que sugeriu algum texto de Fernando Pessoa.
Fui ao www.google.pt, abri uma das tantas páginas dedicadas ao poeta e dei de cara com o antológico poema "A Aranha", datado de 10/ 08/1932: "A aranha do meu destino / Faz teias de eu não pensar. / Não soube o que era em menino, / Sou adulto sem o achar. / É que a teia, de espalhada / Apanhou-me o querer ir... / Sou uma vida baloiçada / Na consciência de existir / A aranha da minha sorte / Faz teia de muro a muro... / Sou presa do meu suporte".
É claro que haveria muito a dizer sobre certos passos morfossintáticos da construção desse profundo poema de Fernando Pessoa, mas vou ater-me a este: "É que a teia, de espalhada / Apanhou-me o querer ir". Mais precisamente, quero ater-me à expressão "de espalhada". Que função e que significado tem ela?
Vou tentar ajudar, com dois trechos de letras da nossa música. O primeiro é de "A Felicidade" (melodia de Tom Jobim; letra de Vinicius de Moraes): "A felicidade é como a gota / De orvalho numa pétala de flor / Brilha tranquila / Depois de leve oscila / E cai como uma lágrima de amor". O segundo é de "Cálice", de Gilberto Gil e Chico Buarque: "De muito gorda a porca já não anda / De muito usada a faca já não corta".
Pois agora eu lhe peço, caro leitor, que pense no papel das expressões "de muito gorda", "de muito usada" (de "Cálice"), "de leve" (de "A Felicidade") e "de espalhada" (do poema de Pessoa). Já pensou? Uma ajudazinha: em "De muito gorda a porca já não anda", o que a expressão "de muito gorda" indica em relação ao fato de a porca já não andar? Isso mesmo: a causa, o que também ocorre com "de muito usada" em "de muito usada a faca já não corta".
Na letra de Vinicius, a coisa é um pouco mais sutil. Em "Depois de leve oscila / E cai como uma lágrima de amor", faz sentido pensar que "de leve" equivalha a "levemente", mas, quando se leva em conta a essência do poema ("Tristeza não tem fim / Felicidade sim"), percebe-se que também é perfeitamente possível entender que a gota de orvalho cai por ser leve, ou seja, a leveza (fragilidade) é a causa de a gota de orvalho cair da pétala, assim como a fragilidade é a causa da finitude da felicidade ("Tristeza não tem fim...").
E o papel da expressão "de espalhada" em "É que a teia, de espalhada / Apanhou-me o querer ir"? Mais uma vez, a preposição "de" introduz expressão que indica ideia de causa: por ser espalhada (esparsa, extensa), a teia apanhou-me o querer ir.
Agora é com você, caro leitor. Entendeu o que significa o passo "apanhou-me o querer ir", não? E viva (sempre!) Fernando Pessoa. É isso.

inculta@uol.com.br


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