São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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DANUZA LEÃO

Na torcida

Maradona está mal, e devo confessar que faço parte dos veneradores do craque.
Sem lição de moral; Maradona sempre fascinou pela sua coragem, por ter sempre falado e feito tudo o que teve vontade sem fazer média com nenhum poderoso da política ou cartola do futebol.
Maradona era mais ele, e isso se via quando entrava em campo, com o peito para a frente, como se estivesse enfrentando o mundo inteiro, sem medo de nada. Era uma força da natureza.
A Argentina cultiva com fervor seus ídolos, e Maradona, desde que começou a jogar, passou a ser um deles. São todos adorados: o jóquei Leguisamo, Evita, Jorge Luis Borges, Guevara, Gardel; este, morto há cerca de 70 anos, continua sendo adorado pelo povo argentino, e seus discos vendem como sempre (há quem diga que ele está cantando melhor que nunca). O que eles têm em comum? Por que razão continuam lembrados? Mérito deles ou dos argentinos?
Maradona foi o maior jogador de futebol que a Argentina jamais teve. Por outro lado, cometeu os maiores erros que alguém -sobretudo um atleta- pode cometer. Se envolveu profundamente com as drogas, foi afastado de uma Copa do Mundo por doping, foi preso, tentou se curar em Cuba (sem sucesso), mas continuou sendo adorado pelo povo, que faz vigília há dias diante do hospital em que está internado.
Não dá para entender por que o médico particular do jogador, mais sua família, querem tanto negar que a razão de sua internação tenha sido uma overdose de cocaína. O mundo inteiro sempre soube que Maradona era viciado em drogas, ele nunca negou. Qual a diferença se ele foi parar no hospital por um problema respiratório ou se exagerou na véspera? Zelar pela sua reputação, a esta altura do campeonato? Imagino que ele acharia ridículo tal cuidado, ora, ora.
Mas me impressiona muito como uma pessoa que ultrapassou tantos limites do que é considerado uma vida a ser admirada tenha sido -e continue sendo- tão adorada por tanta gente. Não me parece que nenhum colega seu, brasileiro, desperte essa paixão no público, sobretudo estando fora da profissão. Nem Pelé, nem Zico, nem Ronaldo, nenhum deles teria uma multidão na porta do hospital rezando -ou será que estou errada? Acho que não.
Maradona nunca teve marqueteiro para cuidar de sua imagem, e está para nascer o gênio que poderia mudar a que ele mesmo criou, e que não poderia ser pior. Mesmo assim, ele é venerado em seu país.
Penso que o que arrebata em Maradona é a liberdade que transparece na sua cara, a displicência com que sempre viveu sua vida, sem dar satisfações a ninguém nem a nada. Não estou fazendo a apologia das drogas, claro, mas também não vou dar uma de moralista (óbvio) reprovando a escolha que ele fez na vida. Também não vou fazer um discurso dizendo que ele mereceu o que está acontecendo: ninguém no mundo -nem mesmo Maradona- é a favor das drogas.
Quando falo da liberdade e da displicência do jogador diante da vida, fantasio que, assim como ele foi se drogar, poderia ter inventado qualquer outra coisa, como pescar ou criar cachorros, pois o sucesso e os milhões que ganhou nunca foram uma prisão para ele.
Acho que Maradona é o ídolo que é porque todos gostaríamos de ser como ele e enfrentar a vida com o peito estufado, sem medo de nada, como ele fazia.
Quando esta crônica foi escrita, Maradona continuava respirando por meio de aparelhos; espiritualmente estou de vigília, na porta do hospital de Buenos Aires, torcendo para ele sair dessa.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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