São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2007

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GILBERTO DIMENSTEIN

A doença do silêncio


Do total de alunos examinados em escolas públicas, 70% foram encaminhados para algum tratamento de saúde

UM RELATÓRIO RESERVADO , preparado na semana passada pela Secretaria da Saúde da cidade de São Paulo com base em 11.381 exames médicos realizados em escolas públicas, mostra o maior massacre perpetrado contra crianças no Brasil. É a mais abrangente investigação de saúde escolar de que se tem notícia e ratifica estudos isolados já realizados no país.
Do total de alunos examinados, 70% tiveram de ser encaminhados para algum tratamento. Ninguém sabia que eles tinham alguma doença -e, se alguém sabia, nenhuma providência foi tomada.
Equipes de médicos encontraram inúmeros casos de uma doença chamada criptorquidia, que consiste em falha na descida dos testículos para o saco escrotal. Será que ninguém teve o mínimo espanto diante de uma visível anomalia anatômica? Registraram-se múltiplos casos de problemas de saúde, como sopro cardíaco e obesidade. Foram determinadas 434 cirurgias urgentes.
Note-se que estamos falando de 434 cirurgias diagnosticadas com base em 11.381 exames. É uma ínfima amostra de um universo de 2 milhões de estudantes, considerando-se apenas as redes municipal e estadual da cidade de São Paulo. Imagine, então, o que deve acontecer num país com 50 milhões de alunos nas redes oficiais de ensino, a maioria dos quais vivendo em cidades onde as dificuldades são maiores do que em São Paulo.
Era rigorosamente previsível o resultado do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), divulgado semana passada, ou seja, o abismo entre as escolas públicas e as particulares.

 

O relatório informa que, naquela amostragem, 80% exibiam problemas dentários, que englobam desde cáries até anomalias mais complexas. Tente prestar atenção a qualquer coisa sentindo dor dente para perceber a dificuldade de uma criança numa sala de aula. Pelo menos 10% dos examinados necessitavam de acompanhamento fonoaudiológico. Não é preciso ser um gênio para calcular o impacto que causa a dificuldade de fala no aprendizado.
Os médicos detectaram que pelo menos 3% dos estudantes precisariam de apoio psicopedagógico. "Foram observadas crianças com distúrbios graves de comportamento", afirma o relatório.
Essas informações foram obtidas porque, desde o início deste ano, há um programa de saúde escolar gerido pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em parceria com a Prefeitura de São Paulo. Além do número de doentes, aparecem falhas no sistema de saúde. Detectou-se que uma das falhas é a falta de pediatras nos postos de saúde. "Sabíamos que as notícias seriam graves, mas não sabíamos que seriam tão graves", reconhece o secretário municipal da Educação, Alexandre Schneider.
A conclusão óbvia: as crianças têm doenças que dificultam e até impedem o aprendizado. Conclusão menos óbvia: por mais que se gaste dinheiro com educação, muita gente simplesmente não vai aprender e estará condenada à marginalidade.
 

A discrepância brutal entre as notas obtidas no Enem pelos alunos das escolas privadas e pelos das públicas, como se divulgou na semana passada, tem a ver não só com a qualidade dos professores ou do currículo. Como esse teste é menos focado em memorização e mais em associação de informações de diferentes matérias, pesa ainda mais a bagagem do estudante. Essa bagagem abrange o número de livros em casa, os estímulos com brincadeira desde a primeira infância, leitura de jornais e de revistas, acesso à internet, viagens, concertos, teatro, cinema, visita a museus -e, evidentemente, a saúde.
 

Um grande número de crianças doentes recebendo tão pouca atenção é um problema que está no nível de barbárie da prisão de uma adolescente numa cela com 20 homens, como ocorreu em Abaetetuba (PA).
 

PS - Ninguém levou a sério projeto lançado, na semana passada, pelo senador Cristovam Buarque, que obriga os governantes e parlamentares a matricular seus filhos apenas em escolas públicas. Não se levou a sério porque sabemos que o projeto jamais seria aprovado, seja por falta de apoio político, seja por questões legais. A provocação, todavia, é séria.
Conviver com o descalabro de tanta gente doente silenciosamente só é explicável porque os grupos mais poderosos estão muito distantes da educação pública, acompanhada de longe, apenas pelos frios indicadores. A verdade, porém, é que, depois desse documento, feito com base nos exames da Universidade Federal de São Paulo, ninguém mais pode alegar ignorância dos fatos, o que torna todos os governantes cúmplices do problema -tão cúmplices quanto os policiais do Pará, que sabiam que uma adolescente estava numa cadeia com 20 homens.
gdimen@uol.com.br


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