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VOLTA ÀS AULAS
Filhos que compartilham material é uma das soluções dos pais num país onde não há cultura de reaproveitar exemplares
Livros "descartáveis" encarecem orçamento familiar
DÉBORA YURI
DA REVISTA
A biomédica Marcia Teresa Bernardini, 42, passou a última semana remexendo o material escolar
de seus quatro filhos. Separou os
livros em melhor estado e decidiu
que, neste ano, os exemplares
usados serão reaproveitados.
Ela não é a única. A classe média
parece estar cansada dos pesados
gastos com educação e procura
soluções práticas. "Está tudo muito caro. Eu ia gastar R$ 1.000 só
em livros didáticos", diz Marcia.
De olho no orçamento, estabeleceu uma meta para este ano letivo: comprar "apenas" 70% do
material pedido para os dois filhos mais novos (gêmeos, 7 anos)
e 20% para o do meio (10 anos).
Para o mais velho, de 12, com exceção de dois exemplares emprestados de amigos, comprará tudo.
A tarefa não é simples. Boa parte
do material é descartável, além de
ser comum a escola mudar alguns
títulos adotados de ano para ano.
Além dos problemas com as escolas, é preciso convencer as
crianças. "O Felipe detesta livro
usado. Até compro alguns que já
temos em casa só para evitar brigas", diz Marcia.
Iniciativa
A briga para fazer a escola caber
no orçamento familiar levou algumas mães do colégio Santa Maria, em São Paulo, a organizarem
um bazar de itens usados em dezembro passado. O slogan era
"Projeto brechó: uniforme não sai
de moda, livro também não".
"Um grupo de mães me procurou, interessadas em "profissionalizar" a iniciativa. Elas já faziam
um troca-troca informal, um comércio paralelo de livros e uniformes. Quando se encontravam no
estacionamento, viam o que podiam trocar entre si", conta a pedagoga Maria Cecília Apostolopouos, 52, três filhos, organizadora do bazar. A escola cedeu espaço
para o evento, que reuniu cerca de
mil exemplares de livros e 200
conjuntos de uniformes.
A relação dos brasileiros com o
livro didático revela uma cultura
do desperdício, incompreensível
diante da crônica escassez de recursos. Em países europeus, como a França e a Bélgica, e nas escolas públicas dos EUA, muitos
estudantes passam a vida escolar
inteira sem comprar quase nenhum livro didático, já que eles
são cedidos pelas escolas e aproveitados ano a ano.
"No Brasil, o livro já é feito para
ser usado e descartado, rabiscado
e cheio de exercícios para resolver. Isso vem da sua história",
avalia Circe Bittencourt, 57, professora da Faculdade de Educação
da USP e autora de tese sobre a
história do livro escolar no Brasil.
Lucros
Não é à toa que o setor didático
foi o mais rentável do primeiro semestre do ano passado. Segundo
dados da Câmara Brasileira do Livro, o faturamento foi R$ 472 milhões -sem incluir os gastos do
governo federal. O segundo colocado, o segmento de obras gerais
(literatura), faturou R$ 238 milhões no mesmo período.
"Ter a obra escolhida para integrar a lista de livros sugeridos pelo
MEC é como trabalhar com cinema e receber indicação ao Oscar",
compara a pedagoga e psicóloga
Angelina Veronica de Andrade
Chu, 44, que teve "Projeto Recriança de Português" (Ediouro)
selecionada para a lista de 2004.
Neste ano, o Programa Nacional do Livro Didático do MEC distribuiu 52,4 milhões de livros e dicionários para cerca de 32 milhões de alunos do ensino fundamental, gastando R$ 266 milhões.
O Estado de São Paulo, que faz
suas próprias aquisições, recebeu
mais R$ 37 milhões para isso. Outros R$ 19,5 milhões foram empregados na compra de obras que
não precisam ser devolvidas.
Para economizar recursos, o
ministério vem investindo em
campanhas de conservação e reutilização dos livros. Com bons resultados: no último levantamento
do Inep (Instituto de Estudos e
Pesquisas Educacionais), realizado em 2000/2001, 94% dos exemplares haviam sido devolvidos.
Com base na pesquisa e em estudos internacionais que demonstram que um volume pode
durar até cinco anos, o MEC decidiu ampliar o prazo para reposição total dos livros escolares de
dois para três anos.
Na rede particular brasileira,
não há filosofia de reaproveitamento. Muitas colégios têm produzido seu próprio material didático, geralmente apostilas, e cobrado por elas, que precisam ser
fiscalizadas pelo MEC. "A apostila
é mais descartável que qualquer
coisa. Colégios aprenderam que
podem ganhar dinheiro e concorrem com a indústria do livro", diz
Circe Bittencourt, da USP.
Único dono
Entre educadores, é consenso
que se deve ensinar o aluno a conservar seus livros -o que não
quer dizer que todos apóiem a
reutilização. A própria secretária
do MEC valoriza a "relação pessoal" estudante-livro. "O ideal é
que a criança possa se apropriar
do livro, rabiscá-lo, sentir que ele
é seu. Mas isso nem sempre é possível", crê Maria José Ferez.
Mais radical, Sylvia Figueiredo
Gouvea, 67, diretora da Escola
Lourenço Castanho, em São Paulo, usa uma analogia "sexual" para defender a "pureza" do livro
novo. "Se o aluno reaproveita o livro do irmão, como criar uma relação de amor com ele? Com os livros, a gente precisa ser monogâmico, não pode ser promíscuo."
"É óbvio que o livro novo oferece mais encanto, mas nós vivemos
numa sociedade em que ele é artigo de luxo. Estima-se que 70% da
população brasileira não tenha
acesso a nenhum livro na vida.
Quem não tem verba precisa viabilizar outras formas de tornar os
livros acessíveis aos jovens. Quem
vai negar o valor dos sebos?", rebate Maria Angela Barbato Carneiro, 55, professora de política de
educação da Faculdade de Educação da PUC-SP e autora de um estudo que aponta que o material
escolar consome 30% do orçamento familiar no início do ano.
Leia a íntegra da matéria no site
www.folha.com.br/revista
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