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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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VOLTA ÀS AULAS

Filhos que compartilham material é uma das soluções dos pais num país onde não há cultura de reaproveitar exemplares

Livros "descartáveis" encarecem orçamento familiar

DÉBORA YURI
DA REVISTA

A biomédica Marcia Teresa Bernardini, 42, passou a última semana remexendo o material escolar de seus quatro filhos. Separou os livros em melhor estado e decidiu que, neste ano, os exemplares usados serão reaproveitados.
Ela não é a única. A classe média parece estar cansada dos pesados gastos com educação e procura soluções práticas. "Está tudo muito caro. Eu ia gastar R$ 1.000 só em livros didáticos", diz Marcia.
De olho no orçamento, estabeleceu uma meta para este ano letivo: comprar "apenas" 70% do material pedido para os dois filhos mais novos (gêmeos, 7 anos) e 20% para o do meio (10 anos). Para o mais velho, de 12, com exceção de dois exemplares emprestados de amigos, comprará tudo.
A tarefa não é simples. Boa parte do material é descartável, além de ser comum a escola mudar alguns títulos adotados de ano para ano.
Além dos problemas com as escolas, é preciso convencer as crianças. "O Felipe detesta livro usado. Até compro alguns que já temos em casa só para evitar brigas", diz Marcia.

Iniciativa
A briga para fazer a escola caber no orçamento familiar levou algumas mães do colégio Santa Maria, em São Paulo, a organizarem um bazar de itens usados em dezembro passado. O slogan era "Projeto brechó: uniforme não sai de moda, livro também não".
"Um grupo de mães me procurou, interessadas em "profissionalizar" a iniciativa. Elas já faziam um troca-troca informal, um comércio paralelo de livros e uniformes. Quando se encontravam no estacionamento, viam o que podiam trocar entre si", conta a pedagoga Maria Cecília Apostolopouos, 52, três filhos, organizadora do bazar. A escola cedeu espaço para o evento, que reuniu cerca de mil exemplares de livros e 200 conjuntos de uniformes.
A relação dos brasileiros com o livro didático revela uma cultura do desperdício, incompreensível diante da crônica escassez de recursos. Em países europeus, como a França e a Bélgica, e nas escolas públicas dos EUA, muitos estudantes passam a vida escolar inteira sem comprar quase nenhum livro didático, já que eles são cedidos pelas escolas e aproveitados ano a ano.
"No Brasil, o livro já é feito para ser usado e descartado, rabiscado e cheio de exercícios para resolver. Isso vem da sua história", avalia Circe Bittencourt, 57, professora da Faculdade de Educação da USP e autora de tese sobre a história do livro escolar no Brasil.

Lucros
Não é à toa que o setor didático foi o mais rentável do primeiro semestre do ano passado. Segundo dados da Câmara Brasileira do Livro, o faturamento foi R$ 472 milhões -sem incluir os gastos do governo federal. O segundo colocado, o segmento de obras gerais (literatura), faturou R$ 238 milhões no mesmo período.
"Ter a obra escolhida para integrar a lista de livros sugeridos pelo MEC é como trabalhar com cinema e receber indicação ao Oscar", compara a pedagoga e psicóloga Angelina Veronica de Andrade Chu, 44, que teve "Projeto Recriança de Português" (Ediouro) selecionada para a lista de 2004.
Neste ano, o Programa Nacional do Livro Didático do MEC distribuiu 52,4 milhões de livros e dicionários para cerca de 32 milhões de alunos do ensino fundamental, gastando R$ 266 milhões. O Estado de São Paulo, que faz suas próprias aquisições, recebeu mais R$ 37 milhões para isso. Outros R$ 19,5 milhões foram empregados na compra de obras que não precisam ser devolvidas.
Para economizar recursos, o ministério vem investindo em campanhas de conservação e reutilização dos livros. Com bons resultados: no último levantamento do Inep (Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais), realizado em 2000/2001, 94% dos exemplares haviam sido devolvidos.
Com base na pesquisa e em estudos internacionais que demonstram que um volume pode durar até cinco anos, o MEC decidiu ampliar o prazo para reposição total dos livros escolares de dois para três anos.
Na rede particular brasileira, não há filosofia de reaproveitamento. Muitas colégios têm produzido seu próprio material didático, geralmente apostilas, e cobrado por elas, que precisam ser fiscalizadas pelo MEC. "A apostila é mais descartável que qualquer coisa. Colégios aprenderam que podem ganhar dinheiro e concorrem com a indústria do livro", diz Circe Bittencourt, da USP.

Único dono
Entre educadores, é consenso que se deve ensinar o aluno a conservar seus livros -o que não quer dizer que todos apóiem a reutilização. A própria secretária do MEC valoriza a "relação pessoal" estudante-livro. "O ideal é que a criança possa se apropriar do livro, rabiscá-lo, sentir que ele é seu. Mas isso nem sempre é possível", crê Maria José Ferez.
Mais radical, Sylvia Figueiredo Gouvea, 67, diretora da Escola Lourenço Castanho, em São Paulo, usa uma analogia "sexual" para defender a "pureza" do livro novo. "Se o aluno reaproveita o livro do irmão, como criar uma relação de amor com ele? Com os livros, a gente precisa ser monogâmico, não pode ser promíscuo."
"É óbvio que o livro novo oferece mais encanto, mas nós vivemos numa sociedade em que ele é artigo de luxo. Estima-se que 70% da população brasileira não tenha acesso a nenhum livro na vida. Quem não tem verba precisa viabilizar outras formas de tornar os livros acessíveis aos jovens. Quem vai negar o valor dos sebos?", rebate Maria Angela Barbato Carneiro, 55, professora de política de educação da Faculdade de Educação da PUC-SP e autora de um estudo que aponta que o material escolar consome 30% do orçamento familiar no início do ano.


Leia a íntegra da matéria no site www.folha.com.br/revista



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