São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

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ÁLBUM DE ANIVERSÁRIO

Relatório de observação

FERNANDO BONASSI
COLUNISTA DA FOLHA

Vimos por meio deste informar que paulistas de todas as partes do planeta tomaram de assalto (sem violência!) a praça da Sé no dia de ontem.
Às exatas 12 horas o marco encravado no umbigo da cidade concentrava a seguinte atividade: para os lados da rua Direita, um grupo de índios dançava ritualmente. Não dançavam do mesmo modo que dançaram seus antepassados na mão dos primeiros brancos. Não pediam por água de chuva, que a população mal se recuperava das tempestades de verão, mas queriam sim uma gota de atenção.
Nada indicava que aquilo fosse pegar fogo. Tanto que para os lados dos bombeiros e da gloriosa Mooca, um grupo de pagode e tarantella, recém-chegado, esperava pacientemente a sua vez.
Apreciaram aquele batuque diferente e prometeram mandar um e-mail à tribo, tirando as dúvidas de harmonia para o próximo Carnaval.
Para o lado de trás, aquele da catedral lotada, metade era o povo curioso, metade era autoridade engravatada. Não havia o diabo de um lugar onde cair morto em meio a tanta gente vidrada na palavra daqueles homens de Deus! Lá fora as pombas castigavam os monumentos, mas pareciam poupar as moças. Quanto aos seus trajes, as cinturas eram baixas, as saias se elevaram com a temperatura e os seios nos berços dos decotes eram esplêndidos.
Por ser típico dessa gente, garoou só de sacanagem, uma vez ou outra. A missa foi então retransmitida por um telão molhado e colorido, para que o cidadão estendido na grama e perto da fonte não sentisse qualquer frieza ou secura por parte da santa madre igreja.
Acontece que por força desses equipamentos eletrônicos e de seus efeitos especiais, os políticos presentes ora melhoravam, ora pioravam a sua imagem diante daqueles eleitores. Como não era dia de política, ainda que fizessem festa, ninguém se sentiu ofendido, excetuando-se dois cachorros e um mendigo, roubados de seus lugares encostados.
Para os lados do largo São Francisco e, segundo o referido marco, também de Minas Gerais, compravam-se cartuchos de impressora por bom preço e um casal se beijava de língua, sem ligar pra criança desse tamanho que rebolava pelo prato de comida. Por falar nisso, o Restaurante Campestre estava cobrando noventa e nove centavos por cem gramas, com 16 pratos quentes e 16 saladas (a filipeta não informava se tinham um único centavo de troco!).
Para os lados de Santos, Silvio Santos e São Vicente, os piqueniques preferiam a sombra das palmeiras magras e das antenas parabólicas espetadas, mascando-se pastéis e cafezinhos de coador a setenta centavos no copo americano. Claro que havia iraquianos cansados dessas batalhas diárias!
Para os lados da Liberdade, por exemplo, japoneses bacanas e chineses ilegais fritavam bolinhos imemoriais e sonhavam à vontade. Todos se mostraram felizes, apesar das cicatrizes... o que deve dizer qualquer boa coisa a nosso respeito.
Fim do relatório.
P.S. 1: Informamos que o mapa de bronze por cima do referido marco (conhecido como "Marco Zero") teria se tornado ultrapassado em poucos segundos, imediatamente após ser chumbado, no século passado.
P.S. 2.: A Esquadrilha da Fumaça também deu o ar de sua graça.


Fernando Bonassi é escritor e colunista da Folha.


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