São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 2000


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LETRAS JURÍDICAS

Direito como linguagem

WALTER CENEVIVA
Colunista da Folha

Paulo Coelho, escrevendo na primeira "Revista da Folha" deste ano, inclui entre seus "Decretos para 2.000" o seguinte: "Todo ser humano precisa conhecer mais linguagens: a linguagem da sociedade e a linguagem dos sinais. Uma serve para a comunicação com os outros. A outra serve para entender as mensagens de Deus".
Volto ao "decreto" de Paulo Coelho porque as pessoas estranhas às profissões jurídicas consideram, em regra, que a linguagem dos trabalhadores dessa área é difícil de entender.
Não se comunica com a sociedade e, com certeza, tem pouco a ver com a compreensão da mensagem divina.
A crítica pode ser estendida a outros setores, como medicina e engenharia, para não falar na heráldica ou na informática, em dois extremos temporais, com complicações expositivas que o vulgo não consegue decifrar.
A diferença entre o jargão de outras profissões e o dos juristas está em que, no direito, o uso de terminologia hermética sacrifica sua compreensão pelo homem comum desejoso de Justiça. Estou tratando dos bons profissionais que recorrem ao vocabulário técnico para ser precisos e não dos tolos, enfatuados, sempre prontos a usar expressões fora de época a fim de que pareçam eruditos ou originais.
Vamos ao outro lado da moeda. Se uma pessoa provida de conhecimentos não superiores aos do segundo grau, com boa capacidade de raciocínio, se dedicar à leitura do Código Civil brasileiro, compreenderá quase tudo do que ali está contido.
O Código Civil é a prova provada do tratamento das coisas mais sérias do direito, com clareza, sem rebuscamentos de linguagem e sem o uso do palavrório pedante, sob cujos arabescos verbais se esconde, às vezes, o temor de ver a incompetência revelada.
O questionamento dos meandros da exposição jurídica tem levado a discutir se o direito, nas leis e nas decisões judiciais, usa a linguagem como instrumento para realizar seus fins ou se terminou transformado na própria linguagem. Isso acontece quando se perdem de vista as finalidades essenciais da aplicação da lei, com sacrifício da consciência social na busca do equilíbrio nas relações humanas. Em palestra feita na Universidade de Cambridge sobre causas do interesse dos filósofos pela qualidade da exposição, Iam Hacking disse que hoje a linguagem nem é mais a interface entre o conhecimento e o conhecido, mas constitui o próprio conhecimento do ser humano atual.
Transpondo sua anotação para a ciência jurídica, teremos que dar à linguagem das leis, da doutrina e das decisões da magistratura um significado autônomo, distinto do objetivo de realizar o justo e defender a verdade. Scott Turrow, advogado e escritor norte-americano, anotou em seu livro "Danos pessoais" ("Personal injuris", Farrar, Straus, Giroux, 403 páginas): "A verdade da lei nunca se ajusta estritamente à prova produzida. Ela também depende do que os advogados chamam de "deduções" e daquilo que espíritos menos restritivos chamariam de imaginação".
Problema sério está na distância entre o direito sonhado para o bem de todos e sua efetiva realização para cada pessoa. Nas batalhas judiciais, a distinção entre verdade e imaginação tem sombras, sobretudo num país em que a clareza, a lógica e o cuidado técnico não caracterizam a elaboração da lei. A distância torna preocupante o direito-linguagem, desprovido de repercussão palpável na coordenação das relações interpessoais, desfazendo esperanças. Estimula descrenças.


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