São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

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MOACYR SCLIAR

O sem-banco que virou banqueiro


O sem-teto era pobre mas não era burro. Deu-se conta de que tinha em mãos uma fortuna que poderia render

 Reinaugurada ontem, a praça da República (centro de SP) recebeu bancos de madeira com divisórias de ferro impedindo que uma pessoa se deite. O resultado é que os moradores de rua passaram a dormir no chão da praça.
Cotidiano

COMO FAZIA todas as noites, o sem-teto chegou à praça para dormir. Foi direto a seu banco predileto -aliás, que era seu banco predileto os outros mendigos sabiam, e não se atreviam a deitar ali, sob pena de serem expulsos sem dó nem piedade. Homem ainda jovem, violento quando se tratava de defender os seus interesses, o sem-teto não hesitava em partir para a agressão.
Ao chegar a praça, contudo, teve uma surpresa. Para começar o logradouro tinha sido reformado, e bem reformado, ganhando novo pavimento, canteiros bem-tratados, lagos. Isso, contudo, ao sem-teto não interessava: a praça para ele não era local de recreação, era moradia. Por isso foi com indignação que constatou a substituição de seu banco-cama por um outro, que era mais novo e mais bonito, mas tinha várias divisórias de ferro. E, a menos que deitasse sobre elas (coisa que não faria: não era faquir), não tinha mais como dormir no banco.
A raiva apoderou-se dele. Pensou em destruir o banco, em colocar fogo naquela coisa maldita. Mas, depois de ter perambulado o dia inteiro, estava cansado demais para isso. De modo que fez como outros mendigos: deitou-se no chão.
E aí viu. A alguns metros de distância estava um pedaço de jornal velho. Trouxera-o provavelmente o vento. Mas, sob o jornal, havia algo, algo que o sem-teto só podia ver exatamente porque estava deitado no chão e não nas alturas do banco. Uma carteira. Uma carteira de dinheiro.
Correu para lá. Era, sem dúvida, a carteira de um estrangeiro, porque estava recheada de cédulas estranhas (euros, como ele descobriria depois). Mais, numa divisão havia seis pedras que reluziram ao crepúsculo: diamantes. Verdadeiros.
O sem-teto era pobre mas não era burro. Logo se deu conta de que tinha em mãos uma fortuna, e que aquilo poderia lhe render muito.
Precisava apenas que alguém o ajudasse a aplicar aquilo. E ele sabia a quem recorrer. Porque, apesar de seu estado miserável, o sem-teto era de uma família de classe média. Estava brigado com todos os parentes, menos com um tio que trabalhava como corretor na Bolsa de Valores.
Este tio ajudou-o com o dinheiro. Várias aplicações bem-sucedidas foram feitas e hoje o antigo sem-teto é um homem rico. Um banqueiro: conseguiu comprar um pequeno banco que lhe dá muito lucro. É um elegante estabelecimento que chama a atenção pelo design arrojado.
Ah, sim, e pelos bancos nos quais os clientes esperam atendimento. São confortáveis, mas todos têm divisórias de ferro. O banqueiro diz que isto é uma metáfora, alertando as pessoas de que, na vida, cada um deve ter o seu lugar. Mas muitos suspeitam que a inspiração para este detalhe da decoração deve ter outra origem. Uma certa praça no centro da cidade, talvez?


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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