São Paulo, domingo, 26 de março de 2006

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CRIME ORGANIZADO

No Complexo do Turano, trabalho do tráfico conta com 20 pessoas, das quais sete têm menos de 18 anos

Didico, 12, é um dos "braços" da boca-de-fumo

DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Enquanto embala parte dos dez quilos de maconha recém-chegados a uma das cinco bocas-de-fumo do Complexo do Turano, no Rio Comprido (zona norte do Rio), o menino de 12 anos, chamado nos becos do lugar de Didico e entorpecido pelo uso de "loló" (droga à base de clorofórmio), canta um funk: "Não tem vergonha. Só quem fuma maconha. Tá ligado, maconheiro! Vou dizer no sapatinho: Maconheiro de verdade só fuma a do boldinho". É madrugada alta de quarta, dia 22.
A "boldinho" citada por Didico é a maconha vendida no Turano. Uma droga de efeitos mais fortes, segundo traficantes e usuários. Há, inclusive, uma página na internet em que os usuários exaltam as "qualidades" da droga.
Em resposta ao funk declamado por Didico, que cospe no chão o tempo todo, um outro garoto, perto dos 17 anos e não menos drogado, emenda: "Pá-Pum. Tipo Colômbia. Pá-Pum. Tipo Colômbia. Tipo, tipo, tipo Colômbia."
A cadência do proibidão (funk de apologia ao crime) dita o ritmo dos movimentos da "endolação" (preparo) da droga, colocada em pequenos sacos plásticos vermelhos -afinal, o Turano é uma das áreas do Comando Vermelho, a facção mais antiga do Rio, criada a partir da união de presos políticos e criminosos comuns, no extinto presídio da Ilha Grande.
Outros sete rapazes ajudam Didico a embalar a droga. Todos estão alucinados pelo uso do loló e, no meio da escadaria de acesso à parte alta do Turano, ficam em círculo em volta do papelão onde a maconha está picotada. Autodenominados "braços", eles são observados pelo "dono do morro", um homem de 35 anos -cinco deles preso. Ele é traficante há mais de dez anos e quer acessar a internet um dia. "Não nasci com um fuzil no cordão umbilical."
Quando soube que a maconha de sua boca-de-fumo é famosa na internet, o chefe do tráfico no Turano sorriu. Foi a única vez em que isso ocorreu durante as quase sete horas em que a reportagem esteve no morro, guardado por jovens com fuzis e pistolas, cuja função é ficar na "contenção" (impedir a entrada de policiais e de criminosos de outras facções).
Ao mesmo tempo em que os meninos embalam a maconha, outro homem, o subgerente do tráfico no Turano, é agarrado por uma moça com roupas insinuantes -sandália alta, calça jeans apertada e blusinha curta. "Só love", diz ele. Entre um beijo e um agarrão no subgerente, a moça, ao lado de duas amigas, dá tragadas fortes num cigarro de maconha.
Enquanto o subgerente namora, a noite segue agitada no Turano. O dono do morro tem um problema sério a resolver: sem sua autorização, cinco meninos do tráfico local roubaram, à tarde, um carro. Nervoso, ele quer saber quem são os autores do roubo.
O sonho de consumo dos jovens das bocas-de-fumo é o Toyota Corolla -"um carrão nervosão, grandão, potente", justificam os meninos. Eles roubam o carro, dão voltas nas favelas e, depois de algum tempo, os abandonam, assim como fazem com motocicletas, muito usadas para impressionar as meninas dos morros nos bailes funks, sempre aos sábados.
Depois de delatado por um dos meninos que usavam loló, o mais velho do grupo de jovens ladrões é chamado. "Quem deu ordem para vocês roubarem o carro lá embaixo hoje?", questiona o traficante. O jovem, armado com uma pistola na cintura, gagueja e responde: "Foi o senhor!"
"Eu não autorizei nada", diz, exaltado, o líder. "Sei bem porque você está roubando lá na pista [fora do morro], é porque você está usando muita droga das cargas [carregamentos de droga que, em média, têm cem papelotes ou trouxinhas] que deixei com você. Vou te suspender da boca agora", continua o traficante, pai de um menino que vive bem longe do Turano e do tráfico. Ele diz que permite o uso de drogas entre os jovens que trabalham na sua boca-de-fumo "para mantê-los por perto e para que eles não se aliem com traficantes de outras facções". "Tenho de mantê-los por perto", alega o traficante, usuário da mesma maconha que vende.
Enquanto "desenrola" (resolve) a suspensão do seu "soldado", o traficante é saudado pelos moradores do Turano que voltam do trabalho. Alguns, como um senhor que subia esbaforido a escadaria do morro, dão o alerta de que dois carros da PM estão em uma rua na base do muro: "Eles estão em quatro, divididos em dois carros. É bom ficar esperto."
"Viu só, se os moradores não gostassem da gente, eles não avisariam que a polícia está perto. Ninguém quer violência aqui", fala à reportagem o "linha de frente" do morro, que usa tênis Nike "doze molas", grossas correntes de ouro no pescoço. O líder tem vários mandados de prisão por tráfico e formação de quadrilha expedidos contra ele - o que o obriga a ficar permanentemente na "micronação" que é o morro.
"E eu posso dizer uma coisa pra você: neste ano, político não sobe o Turano para fazer campanha, para mentir para o povo. Se quiser subir, vai ter de deixar um malote [dinheiro] na boca. Eles vêm aqui, fazem promessas e nunca voltam para cumprir. Gostaria que isso [não autorizar a entrada de candidatos] fosse geral em todas os morros do Comando [Vermelho]", diz o traficante, também autor de alguns homicídios. Questionado sobre quantas mortes causou, ele, que abandonou a escola na 7ª série, respondeu "algumas", sem dar detalhes.
A essa altura, Didico está feliz, "comeu um lanche três carnes", do Bob's, levado por um motorista que serve à boca-de-fumo e que também ofereceu, em uma nota de R$ 1,00, um papelote de cocaína, de R$ 7,00, para que o garoto cheirasse com ele.
Tudo ocorre enquanto o chefe do tráfico conta maços de dinheiro -as bocas do Turano faturam, em média, R$ 1.000 por dia, com o trabalho de 20 pessoas -sendo sete com menos de 18 anos. "Mas a gente tem de pagar o arrego [propina] aos samangos [policiais] toda semana. Só aí são R$ 2.300", afirma ele, que diz ser "temente a Deus" e que, "só às vezes", tem vergonha de vender drogas. (ANDRÉ CARAMANTE)


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