São Paulo, segunda-feira, 26 de março de 2007

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MOACYR SCLIAR

Primeira classe


Ali ficou, sem poder dormir, claro. Porque, depois que se experimenta a primeira classe, nada mais serve  

British Airways se desculpa por colocar cadáver em 1ª classe. A morte de uma passageira idosa em um vôo da British Airways entre Nova Déli e Londres forçou a equipe de bordo a conceder um inusitado "upgrade" que irritou um passageiro da primeira classe e levou a companhia aérea a divulgar uma nota de desculpas. O passageiro contou que acordou no meio da noite com um cadáver no assento ao lado, que estava vago quando ele adormecera. Reclamou ainda de ter que agüentar os lamentos dos parentes da senhora, que passaram o resto da viagem velando o corpo. A senhora viajava na classe econômica, que estava lotada, quando morreu. Foi levada pela equipe de bordo para a primeira classe para causar menor transtorno. Folha Online

DURANTE ANOS , o homem teve um sonho: queria viajar de avião na primeira classe. Na classe econômica, ele, executivo de uma empresa multinacional, era um passageiro habitual; e, quando via a aeromoça fechar a cortina da primeira classe, quando ficava imaginando os belos pratos e as bebidas que lá serviam, mordia-se de inveja.
Talvez por causa disso trabalhava incansavelmente; subiu na vida, chegou a um cargo de chefia que, entre outras coisas, dava-lhe direito à primeira classe nos vôos.
E assim um dia ele embarcou de Nova Déli, onde acabara de concluir um importante negócio, para Londres. E seu lugar era na primeira classe. Seu sonho estava se realizando. Tudo era exatamente como ele imaginara: coquetéis de excelente quantidade, um jantar que em qualquer lugar seria considerado um banquete. Para cúmulo da sorte, o lugar a seu lado estava vazio.
Ou pelo menos estava no começo do vôo. No meio da noite acordou, e, para sua surpresa, viu que o lugar estava ocupado. Achou que se tratava de um intruso; mas, em seguida, deu-se conta de que algo anormal ocorria: várias pessoas estavam ali, no corredor, chorando e se lamentando. Explicável: a passageira a seu lado estava morta. A tripulação optara por colocá-la na primeira classe exatamente porque, naquela parte do avião, havia menos gente.
Sua primeira reação foi exigir que removessem o cadáver. Mas não podia fazer uma coisa dessas; seria muita crueldade. Por outro lado, ter um corpo morto a seu lado horrorizava-o. Não havendo outros lugares vagos na primeira classe só lhe restava uma alternativa: levantou-se e foi para a classe econômica, para o lugar que a morta havia pouco ocupara. Ou seja: ao invés de um "upgrade", ele tinha recebido, ainda que por acaso, um "downgrade".
Ali ficou, sem poder dormir, claro. Porque, depois que se experimenta a primeira classe, nada mais serve. Finalmente o avião pousou e ele, arrasado, dirigiu-se para a saída, onde esperavam-no os parentes da falecida para agradecer-lhe. Disse um deles, que se identificou como filho da senhora: "Minha mãe sempre quis viajar de primeira classe. Só o conseguiu morta graças à sua compreensão. Deus lhe recompensará".
Que tem seu lugar garantido no céu, isto ele sabe. Só espera chegar lá viajando de primeira classe. E sem óbitos durante o vôo.


MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas na Folha de São Paulo.


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