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MOACYR SCLIAR
Primeira classe
Ali ficou, sem poder dormir, claro. Porque, depois que se experimenta a primeira classe, nada mais serve
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British Airways se desculpa por colocar
cadáver em 1ª classe. A morte de uma
passageira idosa em um vôo da British
Airways entre Nova Déli e Londres forçou a equipe de bordo a conceder um
inusitado "upgrade" que irritou um passageiro da primeira classe e levou a companhia aérea a divulgar uma nota de desculpas. O passageiro contou que acordou
no meio da noite com um cadáver no assento ao lado, que estava vago quando ele
adormecera. Reclamou ainda de ter que
agüentar os lamentos dos parentes da senhora, que passaram o resto da viagem
velando o corpo. A senhora viajava na
classe econômica, que estava lotada,
quando morreu. Foi levada pela equipe
de bordo para a primeira classe para causar menor transtorno.
Folha Online
DURANTE ANOS , o homem teve
um sonho: queria viajar de
avião na primeira classe. Na
classe econômica, ele, executivo de
uma empresa multinacional, era um
passageiro habitual; e, quando via a
aeromoça fechar a cortina da primeira classe, quando ficava imaginando os belos pratos e as bebidas
que lá serviam, mordia-se de inveja.
Talvez por causa disso trabalhava
incansavelmente; subiu na vida,
chegou a um cargo de chefia que, entre outras coisas, dava-lhe direito à
primeira classe nos vôos.
E assim um dia ele embarcou de
Nova Déli, onde acabara de concluir
um importante negócio, para Londres. E seu lugar era na primeira
classe. Seu sonho estava se realizando. Tudo era exatamente como ele
imaginara: coquetéis de excelente
quantidade, um jantar que em qualquer lugar seria considerado um
banquete. Para cúmulo da sorte, o
lugar a seu lado estava vazio.
Ou pelo menos estava no começo
do vôo. No meio da noite acordou, e,
para sua surpresa, viu que o lugar estava ocupado. Achou que se tratava
de um intruso; mas, em seguida,
deu-se conta de que algo anormal
ocorria: várias pessoas estavam ali,
no corredor, chorando e se lamentando. Explicável: a passageira a seu
lado estava morta. A tripulação optara por colocá-la na primeira classe
exatamente porque, naquela parte
do avião, havia menos gente.
Sua primeira reação foi exigir que
removessem o cadáver. Mas não podia fazer uma coisa dessas; seria
muita crueldade. Por outro lado, ter
um corpo morto a seu lado horrorizava-o. Não havendo outros lugares
vagos na primeira classe só lhe restava uma alternativa: levantou-se e
foi para a classe econômica, para o
lugar que a morta havia pouco ocupara. Ou seja: ao invés de um "upgrade", ele tinha recebido, ainda que
por acaso, um "downgrade".
Ali ficou, sem poder dormir, claro.
Porque, depois que se experimenta a
primeira classe, nada mais serve. Finalmente o avião pousou e ele, arrasado, dirigiu-se para a saída, onde esperavam-no os parentes da falecida para agradecer-lhe. Disse um deles, que se identificou como filho da senhora: "Minha mãe sempre quis
viajar de primeira classe. Só o conseguiu morta graças à sua compreensão. Deus lhe recompensará".
Que tem seu lugar garantido no
céu, isto ele sabe. Só espera chegar lá
viajando de primeira classe. E sem
óbitos durante o vôo.
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas na
Folha de São Paulo.
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