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São Paulo, segunda-feira, 26 de maio de 2003

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MOACYR SCLIAR

Voto zero

 "Até a derrota sempre" é o lema do Partido do Karma Democrático (PKD) para as eleições municipais do próximo domingo na cidade de Bilbao, no País Basco (norte da Espanha). Nas eleições municipais bascas de 1999, o PKD obteve 14 mil votos, mas, nas regionais de 2001, desabaram para 2.000 votos. Explicável, segundo o candidato a prefeito de Bilbao pelo PKD, o cantor Bosco, "El Tosco". "Somos incompetentes e proclamamos isso", disse o candidato a prefeito de Bilbao. O slogan do PKD é "voto inútil", e a última canção do cantor se intitula "Quero Ser Empregado Público". O programa eleitoral de Bosco, com 13 pontos, promete "tornar quadrada a praça circular de Bilbao". Mundo Online, 21.mai.2003

Dentro de sua ambição reconhecidamente desmedida, o líder nunca escondeu seus reais objetivos: o "voto zero". Segundo ele, chegaria o dia, tão sonhado, em que, nas eleições municipais, o partido não obteria sequer um voto. Para aqueles que o acusavam de sonhador, de utópico, ou pior ainda, de megalomaníaco, ele brandia números: quem passou de 14 mil votos para 2.000 em apenas dois anos pode perfeitamente antecipar umavotação completamente nula,garantia.
A verdade, porém, é que não ficava só nos devaneios. Homem prático, adotava medidas enérgicas para a consecução de seu objetivo. O programa eleitoral, por exemplo, havia sido cuidadosamente desenhado por ele próprio para irritar a população, a começar por aquela história de tornar quadrada uma praça que por séculos fora circular e com a qual todos já estavam habituados. Só aí, calculava o líder, seriam perdidos pelo menos uns 90% dos votos potenciais.
Mas ele ia adiante. No congresso extraordinário do partido, por ele convocado às pressas, várias resoluções foram adotadas, sempre por iniciativa sua. A primeira resolução mandava votar em qualquer dos candidatos adversários, de preferência naqueles que mais ridicularizassem o partido. Como alternativa, admitia-se o voto nulo, mas só em último caso. O líder argumentava, não sem razão, que anular o voto poderia ser interpretado como um apoio direto a ele -coisa que jamais admitiria. Mais ainda: no trabalho de boca-de-urna, os militantes deveriam se hostilizar mutuamente, trocando insultos e, se possível, jogando ovos podres uns nos outros.
O líder tem certeza de que seus comandados seguirão fielmente essas instruções e que o ideal do "voto zero" é perfeitamente exequível. Só existe uma incógnita neste plano: o seu próprio voto. O que ele mais teme é o momento em que se verá, sozinho, diante da urna. Pode ser que, neste instante, e movido por um impulso irresistível, ele vote em si próprio. Se tal acontecer, não mais haverá esperança para a humanidade.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

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