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São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Sem que ninguém as vissem"

Nos últimos dias, alguns jornais publicaram um anúncio de uma fundação cultural, em que se encontra este trecho: "...sem que ninguém as vissem". O pronome oblíquo "as" se refere a "fotografias".
Rapidíssimos, alguns leitores me escreveram para perguntar se é adequada a forma "vissem". Não é. O sujeito de "ver" é "ninguém", pronome que habitualmente leva o verbo à terceira pessoa do singular ("Ninguém sabe", "Ninguém conseguiu", "...sem que ninguém as visse" etc.).
A questão não se esgota aí. Talvez seja interessante analisar o que leva quem fala ou escreve a optar por construções como a que se vê no anúncio citado. Esse, aliás, tem sido o procedimento de muitas bancas examinadoras de vestibulares importantes, que não se limitam a perguntar qual é a forma inadequada ou qual é a forma que deveria ter sido empregada. Pede-se isso, sim, mas também se pede o porquê do desvio.
No caso de "sem que ninguém as vissem", certamente é a proximidade do verbo com a forma plural "as" o motivo do desvio. O falante/redator se deixa levar pela atração exercida pelo "as" e acaba flexionando o verbo em concordância com esse pronome.
A esta altura, o leitor talvez queira perguntar se a explicação do desvio o torna legítimo. Não o torna, mas serve para mostrar que ninguém está livre de cochilos como esse. Nesses casos, uma boa e atenta releitura costuma eliminar o problema.
A frase do anúncio me trouxe à mente uma questão da Fuvest, baseada neste trecho de um sermão de Vieira: "A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós é que comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior". A banca pediu aos candidatos que reescrevessem o segundo período, substituindo "escândalo" por "escândalos" e fazendo as adaptações estritamente necessárias.
Pois bem, quando se troca "escândalo" por "escândalos", é estritamente necessário (na primeira oração do período) trocar "grande escândalo é este" por "grandes escândalos são estes". Na segunda oração, o substantivo "escândalo" é retomado pelo pronome "o" ("mas a circunstância o faz") e qualificado pelo adjetivo "maior" ("o faz ainda maior"), portanto "o" deve passar a "os" e "maior", a "maiores".
É bom lembrar que a troca de "escândalo" por "escândalos" não implica a troca de "circunstância" por "circunstâncias".
Vamos à frase toda, então? Vamos lá: "Grandes escândalos são estes, mas a circunstância os...". E agora? Que forma verbal usar: "faz" ou "fazem"? Como o sujeito da segunda oração é "a circunstância", a forma escolhida só pode ser "faz": "Grandes escândalos são estes, mas a circunstância os faz ainda maiores".
Quando se põe essa questão numa prova, não são poucos os alunos que flexionam o verbo "fazer" no plural ("mas a circunstância os fazem"), o que comprova a influência exercida pelo termo mais próximo do verbo na decisão sobre a concordância adotada.
Que fazer, afinal? Nada que vá além de uma cuidadosa releitura. Pronomes como "os" e "as", oblíquos, não costumam funcionar como sujeito, por isso não devem levar o verbo ao plural. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras E-mail - inculta@uol.com.br


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