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São Paulo, sábado, 26 de julho de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Sem-terra, sem-teto ou sem-lei?

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

A morte do jornalista deu o tom trágico ao que o governador de São Paulo, após o apossamento de prédio no centro da capital, havia considerado "um espetáculo de invasão". Eram os sem-teto. Têm ocorrido outras invasões -estas em áreas rurais, protagonizadas pelos sem-terra. Tanto aqueles quanto estes prometendo resistir caso uma ordem judicial determine a reintegração de posse dos proprietários.
A Constituição afirma (artigo 5º) a inviolabilidade do direito de propriedade no quadro dos direitos e garantias fundamentais da cidadania e dos indivíduos. Lida isoladamente, essa parte da Carta Magna afirmaria, de modo muito claro, que as invasões violam o direito dos proprietários, e são, portanto, inaceitáveis em si mesmas e mais inaceitáveis ainda se houver resistência à ordem judicial.
Acontece, porém, que a Constituição também afirma a função social da propriedade, substituindo o raciocínio do direito privado pela visão pública do conjunto dos direitos em sua relatividade. Serve de exemplo a definição do artigo 186, quanto à propriedade rural. Nesse dispositivo, a função social é cumprida quando o imóvel "atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei," vários requisitos, entre os quais o aproveitamento racional e adequado, a preservação do ambiente e a exploração que favoreça proprietários e trabalhadores.
Os sem-teto invadiram imóveis urbanos desocupados ou insuficientemente ocupados. O artigo 182 da Carta começa dizendo que a política de desenvolvimento urbano é executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei. Seu objetivo consiste em ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. O leitor ponderará que a expressão "funções sociais da cidade" se presta a todas as interpretações, ao gosto de cada intérprete. A crítica é procedente, mas o texto sustenta a consciência social.
Pensemos mais que todo cidadão tem o direito constitucional (artigo 6º) de morar num espaço capaz de o abrigar com sua família. Nas grandes cidades, isso não tem sido possível, tanto que se formam favelas e cortiços de condições subhumanas. Formam-se, é bom dizer, não somente em São Paulo ou no Rio de Janeiro mas em todas as grandes cidades, de Nova York a Moscou.
A diversidade das alternativas se presta a posições radicais. Há os que pretendem a expulsão violenta, mas a questão social raramente, quase nunca, é policial. Consiste em encontrar espaços compatíveis com a necessidade de morar ou com a necessidade de obter o sustento no trabalho agro-pecuário.
Mas e os proprietários, com longo tempo de atividades agrícolas ou empenhados na construção de prédios e casas? Cada atingido pelas invasões é ofendido no seu capital, no seu trabalho, porquanto elas são, em si mesmas, irregulares, explicáveis apenas pela busca de um teto ou de um espaço de trabalho em locais que o proprietário mantém sem aproveitamento, até que o progresso lhe dê lucros, quando valorizados por atos do poder público, pagos por todos. O empreendedor ativo, atento ao desenvolvimento, tem direito à proteção. O proprietário injustificadamente inerte não o tem. É o que resulta da Constituição e das leis e deve levar-nos ao meio-termo do equilíbrio.
Em síntese: a invasão sem limites não é direito; a propriedade sem limites não é direito. A solução, instalado o conflito, está no Judiciário, com o cumprimento do que for decidido, rapidamente, pelo juiz competente. Sem greve.


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