São Paulo, quinta-feira, 26 de outubro de 2000

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PASQUALE CIPRO NETO

Por falar em causa e consequência...

Na semana passada, tratamos da relação causa/consequência. Houve dois motes: um círculo vicioso mal resolvido e o problema com o cinto do Corsa.
Vamos tocar em mais um ponto desse assunto. O mote será uma questão da Fuvest, baseada neste trecho de "Vidas Secas", monumento literário escrito por Graciliano Ramos: "Ordinariamente andavam pouco, mas, como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas".
Dizia o enunciado: "Reestruturando-se esse período, mantém-se o sentido original apenas em:
a) A viagem progredira bem três léguas, uma vez que haviam repousado bastante na areia do rio seco, dado que ordinariamente andavam pouco.
b) Haviam repousado bastante na areia do rio seco; a viagem progredira bem três léguas porque ordinariamente andavam pouco;
c) Porque haviam repousado bastante na areia do rio seco, ordinariamente andavam pouco, e a viagem progredira bem três léguas.
d) Ainda que ordinariamente andassem pouco, a viagem progredira bem três léguas, pois haviam repousado bastante na areia do rio seco.
e) Em virtude de andarem ordinariamente pouco e de haverem repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas.".
Antes de transformar o processo de resolução em verdadeira roleta-russa, é preciso analisar as relações básicas que há no texto de Graciliano. Para isso, é fundamental levar em conta os conectivos, que são dois: "mas" e "como".
O primeiro ("mas") pertence ao time das adversativas. A palavra "adversativo" é da família de "adverso", "adversário", "adversidade"; estamos, pois, no campo do contraste, da oposição.
Onde estão os opostos, os contrários? Estão no caminhar ordinário ("pouco") e no daquela circunstância ("bem três léguas"). Basta essa percepção para resolver a questão, já que em apenas uma alternativa se mantém essa relação de contraste.
É claro que muda o conectivo empregado. Agora é "ainda que", que também expressa contraste, oposição ("Ainda que seja desonesto, não lhe faltam eleitores").
O outro conectivo do texto de Graciliano é "como", que, no caso, tem valor causal. Quando se diz "Como o povo é desinformado, não sabe diferenciar o que é atribuição de prefeito do que é de governador", diz-se que a desinformação é causa e que o efeito é não saber diferenciar.
No caso do texto de Graciliano, o repouso é causa; a consequência é a viagem progredir três léguas. No item "d", essa relação se estabelece com o conectivo "pois".
Como diz a garotada, o resto é pura viagem. No item "b", o fato de ordinariamente andarem pouco se transforma em causa de terem andado bastante, o que é falso. No item "c", o repouso é causa de ordinariamente andarem pouco e do progresso da viagem, o que também é falso. No "e", o pouco andar ordinário e o repouso transformam-se na causa de andarem bastante (hiperfalso).
Como se vê, a mera decoreba dos nomes das orações e das conjunções não leva a nada. É preciso pensar direito. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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