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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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JUSTIÇA

Serviço inédito foi inaugurado na última terça pelo governo paulista; maioria dos casos foi discussão de casais

Morador vira "juiz de paz" na periferia

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

Naquela manhã, Benedita Oliveira, 64, saiu de casa com uma missão difícil: prestar queixa do próprio neto na delegacia. As discussões entre ambos haviam ultrapassado os limites. Numa briga, ele destruiu o guarda-roupa. Ela já sentia medo do menino que havia criado e decidiu denunciá-lo na delegacia que integra o CIC (Centro de Integração da Cidadania) do Itaim Paulista (zona leste de São Paulo).
Lá, porém, foi encaminhada ao serviço de mediação, para o qual contou sua história. Do outro lado da mesa, quem a ouvia não era um policial, nem um advogado ou uma assistente social. Os responsáveis pelo serviço de mediação no órgão estadual são os próprios moradores do bairro -uma iniciativa inédita no país.
"Nós vivemos na periferia, não existe ninguém melhor para conhecer os problemas daqui. Nós falamos a mesma língua", afirma Aparecido Ramos André, 50, que mediou a reconciliação de Oliveira com o neto.
O serviço foi inaugurado pela Secretaria Estadual da Justiça e da Defesa da Cidadania na última terça-feira. Entretanto já era realizado em caráter experimental desde o fim de agosto.
Nesse período, 58 casos foram atendidos. A maioria relacionada a brigas de casal, de acordo com a assistente social Márcia Rosa, coordenadora do CIC. Mas também não faltam brigas entre vizinhos, proprietários e inquilinos e "sócios" -como os amigos que vendiam doces dentro de ônibus e passaram a divergir sobre a divisão do lucro.
Segundo ela, a mediação é mais eficiente quando feita por membros da própria comunidade, pois eles já têm estabelecida entre si uma relação de confiança.
Ainda assim, os voluntários precisaram passar por um treinamento de seis meses, iniciado em fevereiro deste ano, no qual aprenderam noções de psicologia, sociologia e direito. E, principalmente, ouviram que não cabe a eles tomar partido ou impor soluções aos envolvidos. A meta é ajudar as partes a entrarem em um acordo.
Para o policial militar Daniel Feliz, 42, sua ação como mediador no CIC o ajudou até a rever seu método de trabalho na corporação. "Na PM a gente chega, já resolve na hora e vai atender outra ocorrência. Aqui eu aprendi a importância de ouvir as duas partes com atenção", afirma.
Além disso, a mediação só é válida para problemas civis. Questões criminais devem ser encaminhadas à Justiça. Nesses casos, o que o mediador pode fazer é acalmar o ânimo dos envolvidos.
A mediadora Zineide Silva, 38, lembra o caso de um pai que procurou o serviço furioso com o rapaz que havia engravidado sua filha, de 14 anos. Queria não apenas processar o rapaz, como dar-lhe uma surra. "Às vezes, as pessoas que vêm aqui resolvem dar prosseguimento a processos judiciais, mas, com a mediação, já vão para a Justiça de uma forma menos agressiva", afirma Silva.

Voluntários
Dos 35 moradores que fizeram o treinamento, 22 deram continuidade ao serviço. Eles atendem em dupla e se revezam ao longo da semana, de modo a haver atendimento de segunda-feira a sábado, das 9h às 17h.
O serviço é voluntário, o que constitui uma preocupação para alguns dos mediadores, como Zineide Silva, que está desempregada e participa do programa duas vezes por semana, das 9h às 13h. "A experiência é muito gratificante, mas eu preciso de emprego e, se conseguir, a que horas virei? Se a gente recebesse alguma coisa aqui, não teria esse problema."
Segundo o secretário da Justiça, Alexandre Moraes, essa possibilidade não existe. "As pessoas podem ir no fim de semana, no horário de almoço. É uma forma de eles auxiliarem a comunidade, não de gerar emprego", disse.


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