São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2008

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GILBERTO DIMENSTEIN

Como aprendi a gostar de um cemitério


Estamos em um círculo virtuoso, provocado por uma série de fatores -entre eles, a melhoria da educação e o boom cultural

UM CEMITÉRIO de São Paulo se transformou em um dos meus prazeres diários na cidade. Nos últimos dois anos, periodicamente, pedaços de suas paredes externas vêm sendo ocupados por peças de azulejo produzidas por artistas ou apenas cidadãos comuns que desejam deixar ali sua marca.
Como o cemitério fica no meu bairro, a Vila Madalena, e tenho o hábito de andar a pé, aprendi a apreciá-lo como se fosse uma galeria, em movimento, a céu aberto. Quase todos os dias, descubro uma novidade.
Às vezes, um pequeno detalhe que tinha passado despercebido. Ou apenas via os painéis por outro ângulo, dependendo do reflexo da luz.
Um espaço sem vida, revitalizado pelo empenho discreto, anônimo, de toda uma comunidade. Quando tento saber o que vem por aí na cidade e imaginar o impacto do futuro prefeito que sai hoje das urnas, o cemitério São Paulo parece sua metáfora em construção.

 

O próximo prefeito vai pegar uma cidade quase ingovernável e, para piorar, a crise econômica vai abalar a sua capacidade de investimento.
Sem contar quanto custará em redução de empregos, de salário, além da contenção de novos projetos.
Quem não se ilude com a manipulação da campanha eleitoral está consciente de que, numa cidade com 11 milhões de habitantes, sendo 3 milhões de pobres, os desafios da educação, da saúde, do trânsito e da segurança são tarefas para gerações.
Mas, mesmo com a crise, o próximo prefeito não vai pegar uma cidade com paz de cemitério. Os números mostram que estamos num círculo virtuoso, provocado por uma série de fatores -entre eles, a melhoria da educação e a efervescência cultural que, entre outras coisas, produzem indivíduos mais críticos e exigentes. Basta lembrar que os museus viraram a grande praia do paulistano, atraindo as classes C e D, conforme mostrou pesquisa do Datafolha.

 

Atingiu-se um grau de mobilização que vem traduzindo em números as metas para cada região de São Paulo. Bairros estão se tornando modelos de gestão ao combater a violência ou melhorar suas escolas. Começam a surgir em algumas localidades montagens de complexas redes, como as plataformas desenvolvidas pelo Sou da Paz em parceria com o Unicef.

 

Reclamamos que os candidatos ainda mostram planos vagos de governo. Mas somos obrigados a reconhecer que tanto Gilberto Kassab como Marta Suplicy aceitaram se submeter a uma maratona de sabatinas nas rádios e emissoras de TV, a maioria delas duras -sem contar as sabatinas conduzidas por associações comunitárias. Houve até encontros temáticos que exigiram mais profundidade. Num deles, os dois candidatos tiveram de responder a perguntas apenas sobre educação.
Não pudemos extrair números precisos deles, mas constatamos um consenso de propostas -essa é a notícia mais importante das eleições paulistanas.

 

Todos falam em dar mais atenção à pré-escola (em especial às creches), ampliar a jornada escolar, aproximar a cultura dos alunos, formar melhor os professores. É consenso que se deve levar para a periferia uma rede maior de especialidades médicas. Ninguém defende mais transporte individual; Kassab e Marta passaram a campanha falando em corredor de ônibus e metrô.
Ficou nítido pelos discursos que os resultados de uma prefeitura estão diretamente condicionados a executar suas tarefas em parceria com o governador e com o presidente -é o caso do metrô.

 

O eleitor paulistano prestou basicamente atenção aos seus problemas locais, num pragmatismo de quem aprende a ser cidadão. Não pesaram as sucessões presidencial e estadual; Lula e Serra apareceram como personagens capazes de ajudar a resolver questões locais.
Por isso, os candidatos tiveram de jurar que, se eleitos, ficariam no cargo até o fim do seu mandato. Marta prometeu ficar por oito anos, perseguindo a reeleição. Kassab disse que, se ele não cumprisse suas palavras, os eleitores não deveriam votar mais nele. "Não votem em mim", disse na semana passada.
Volto a dizer que Kassab e Marta, por suas experiências administrativas e conhecimentos da cidade, ambos com boa avaliação em suas gestões, estão mais do que preparados para um novo mandato.

 

Essas mudanças não fazem ainda de São Paulo uma cidade civilizada.
Apenas mostram uma resistência e sinais de inteligência e vida. Muitas vezes me perguntam por que gosto tanto de São Paulo, com tantos problemas, e a resposta está no cemitério. Prefiro viver em uma cidade em que a beleza não está na paisagem natural, mas na beleza construída pelas mãos -assim como as paredes do cemitério São Paulo.

 

PS: Coloquei no meu site (www.dimenstein.com.br) as imagens do cemitério -aliás, em um bairro da diversão e das artes, como a Vila Madalena, o cemitério só poderia mesmo ser colorido.

gdimen@uol.com.br

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