UOL


São Paulo, sexta-feira, 26 de dezembro de 2003

Próximo Texto | Índice

TRÂNSITO

Pesquisa feita em Salvador aponta que veículos com insulfilm lideram infrações; especialista defende rever permissão de uso

Carro com vidro escurecido é mais infrator

ALENCAR IZIDORO
SIMONE IWASSO
DA REPORTAGEM LOCAL

Os carros com películas que escurecem os vidros em níveis que dificultam a identificação do condutor são, em geral, mais infratores no trânsito que a média da frota. A constatação apareceu, "sem querer", em uma pesquisa feita neste ano em Salvador pelo engenheiro Horácio Augusto Figueira.
Figueira, que é professor da Universidade Anhembi Morumbi, de São Paulo, foi convidado pela SET (Superintendência de Engenharia de Tráfego) da capital baiana para fazer um estudo sobre dois tipos de infrações cometidas pelos motoristas -a ultrapassagem no sinal vermelho e a parada na faixa de pedestres. Foram 234 horas de levantamento, com a observação de 200 mil veículos -quase 45% da frota.
O resultado apontou que 14,42% dos automóveis particulares cujos vidros não permitiam a identificação dos motoristas -essencialmente por conta das películas conhecidas no mercado como insulfilm, nome comercial de uma das marcas- cometeram alguma das infrações analisadas.
Esse grupo ficou em primeiro lugar no ranking, seguido pelas motocicletas particulares -11,72%. A média, entre todos os tipos de veículo (ônibus, táxis, caminhões e vans, por exemplo), foi de 2,77%. Entre os carros dirigidos por homens e mulheres, 2,46% e 1,71%, respectivamente.
Essa conclusão apareceu "sem querer" porque não era essa a intenção da pesquisa. Os automóveis com as películas escuras nos vidros foram classificados apenas por causa da dificuldade dos pesquisadores de campo de identificação, nesses casos, do sexo de quem estava no volante.
Em seu estudo, Figueira diz que as películas que não permitem observar quem está dirigindo tendem "a gerar ações e comportamentos não-identificáveis, ou seja, preserva-se visualmente, perante a sociedade em geral, a identidade do condutor infrator".
O engenheiro recomenda ainda à SET que encaminhe os resultados da pesquisa ao Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) "para que seja estudada, pesquisada e revista a questão das películas nos vidros dos veículos".

Estética e segurança
Esses números não podem ser aplicados automaticamente a qualquer região do país. As características de quem tem a película não são iguais em todos os lugares, alerta o pesquisador.
Em Salvador, segundo Cristina Aragon, gerente de educação no trânsito da SET, as razões estéticas ainda predominam entre os motivos que levam à aplicação -enquanto em cidades como São Paulo há uma expansão para tentar dificultar os assaltos.
Mas, segundo Figueira, esse comportamento mais agressivo e transgressor dos veículos "filmados" também foi observado na capital paulista -embora não tenha sido quantificado-, onde ele organizou um levantamento semelhante entre 2001 e 2002.
A primeira explicação para essa conclusão está ligada à idade do motorista que dirige esses veículos. A película que escurece os vidros, até por motivos estéticos, é difundida principalmente entre os mais jovens -para quem os carros representam liberdade, poder, sucesso, conceitos que favorecem as atitudes infratoras. Não é à toa que eles são as principais vítimas de acidentes -50% das batidas fatais em São Paulo envolvem motoristas entre 18 e 30 anos.
"Eles não avaliam os riscos como os adultos", reforça Sonia Chebel Mercado Sparti, psicóloga e professora da PUC (Pontifícia Universidade Católica), cuja tese de doutorado estudou como agem os jovens no trânsito.
"Há quem se sinta inferiorizado quando é ultrapassado na estrada e pense que não é nada sem aquela máquina", afirma Sparti.

Encorajamento
"O motorista se sente encorajado sob a égide desse falso escudo", diz Salomão Rabinovich, diretor do Cepat (Centro de Psicologia Aplicada ao Trânsito), em referência ao fato de as películas -que "protegem" a identidade dos condutores e os deixam num ambiente escuro- servirem de facilitador da transgressão.
"O anonimato pode favorecer comportamentos agressivos, principalmente em relação aos pedestres", diz Figueira. "Muitos colocam a película por segurança. Mas ainda há quem queira se esconder da sociedade", afirma.
A colocação de um nível de transparência em desacordo com a lei (no caso dos níveis mais escuros) também já pode indicar uma tendência de infringir, de desrespeitar as regras sociais.
A socióloga Alessandra Olivato, que fez dissertação de mestrado na USP abordando a falta de cidadania no trânsito, diz ter identificado uma banalização do desrespeito às regras por falta de noção de espaço público. "A maioria admite cometer infrações com naturalidade, por motivos individuais. Cumprir a lei passa a ser visto como um sacrifício pessoal. Não há cidadania", afirma Olivato.
Segundo ela, os "privilégios" também interferem no comportamento do motorista -e as películas escuras, além de uma suposta vantagem estética, podem ser um privilégio ao impedir a constatação de infrações de trânsito como a falta do cinto de segurança e a utilização do celular.
"O carro é usado como status econômico para se diferenciar. Quem está num carro zero-quilômetro se sente dono do mundo. Os motoboys, de classe baixa, se sentem discriminados pelos carros grandes e importados", diz.


Próximo Texto: Inspeção pode barrar irregularidade
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.