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São Paulo, segunda-feira, 27 de janeiro de 2003

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MOACYR SCLIAR

A inevitável precariedade da vida

  "Médico lança "máquina de morrer" em congresso de eutanásia. O médico Philip Nitzschke, principal defensor da eutanásia na Austrália, apresenta um novo equipamento para ajudar pacientes terminais a morrer. A máquina leva a uma morte rápida por inalação de monóxido de carbono. O médico diz que seu equipamento não pode ser considerado ilegal porque também tem outras aplicações terapêuticas, como a produção de oxigênio." Folha Online, 7.jan.2003

Os visitantes acorrem em grande número, curiosos para ver a máquina de morrer, um complicado dispositivo com tubos, canos e mostradores. A todos ele explica, pacientemente, como funciona o equipamento. E o faz em tom didático porque, como sempre gosta de repetir, está lidando com fatos da vida. Explica, por exemplo, que seu monóxido de carbono é absolutamente puro, não como aquele emitido pelos motores de automóveis, que contém impurezas, entre elas hidrocarbonetos cancerígenos. Não, o equipamento é limpo, higiênico, garantido.
Também se permite momentos de humor, recorrendo, conforme o público, a uma de duas piadinhas. Para seus colegas praticantes de eutanásia, e que às vezes expressam dúvidas quanto à rapidez e à eficácia do procedimento, ele diz, com um pequeno sorriso:
- Até hoje, nenhum dos usuários reclamou.
Para o público geral, alude àquilo que torna o equipamento legal, a produção de oxigênio. E diz:
- Se por acaso o buraco na camada de ozônio aumentar de repente, e se o ar se tornar irrespirável, podem ter certeza de que este aparelho salvará muitas vidas. Agora, se alguns dos que forem salvos quiserem mudar de idéia depois, é só mudar esta chavezinha aqui, de "oxigênio" para "monóxido de carbono".
Todos riem, claro, mas todos acabam indo embora. Porque as coisas têm fim -e mesmo a visita a um equipamento interessantíssimo, em algum momento, e às vezes de forma súbita, termina. Há um instante, portanto, em que ele fica sozinho. No estande de exposições, ele fica sozinho. Reina então um silêncio sepulcral.
Ele olha para o seu aparelho, o aparelho no qual trabalhou tanto tempo, e ao qual dedica muito afeto. Mas, neste momento, não é afeto o que ele sente. É outra coisa, uma estranha sensação. É como se a máquina o convidasse: vem, amigo, senta aqui, coloca esta máscara, prova o meu monóxido de carbono e vê como é doce acabar com os sofrimentos desta vida.
Uma atração quase irresistível o empurra para a máquina. Ele tem de mobilizar todas as suas forças para dela escapar. E então, ainda suando frio, e sem olhar para trás, deixa o recinto. Vai a um bar, beber alguma coisa. Enquanto está saindo, as luzes se apagam. Ele prossegue, porém. Assobiando no escuro.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

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