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MOACYR SCLIAR
A inevitável precariedade da vida
"Médico lança "máquina de morrer"
em congresso de eutanásia. O médico
Philip Nitzschke, principal defensor
da eutanásia na Austrália, apresenta
um novo equipamento para ajudar
pacientes terminais a morrer. A máquina leva a uma morte rápida por
inalação de monóxido de carbono. O
médico diz que seu equipamento não
pode ser considerado ilegal porque
também tem outras aplicações terapêuticas, como a produção de oxigênio." Folha Online, 7.jan.2003
Os visitantes acorrem
em grande número, curiosos para ver a máquina de morrer, um complicado dispositivo
com tubos, canos e mostradores.
A todos ele explica, pacientemente, como funciona o equipamento. E o faz em tom didático porque, como sempre gosta de repetir, está lidando com fatos da vida. Explica, por exemplo, que seu
monóxido de carbono é absolutamente puro, não como aquele
emitido pelos motores de automóveis, que contém impurezas,
entre elas hidrocarbonetos cancerígenos. Não, o equipamento é
limpo, higiênico, garantido.
Também se permite momentos
de humor, recorrendo, conforme
o público, a uma de duas piadinhas. Para seus colegas praticantes de eutanásia, e que às vezes
expressam dúvidas quanto à
rapidez e à eficácia do procedimento, ele diz, com um pequeno
sorriso:
- Até hoje, nenhum dos usuários reclamou.
Para o público geral, alude
àquilo que torna o equipamento
legal, a produção de oxigênio. E
diz:
- Se por acaso o buraco na camada de ozônio aumentar de repente, e se o ar se tornar irrespirável, podem ter certeza de que este
aparelho salvará muitas vidas.
Agora, se alguns dos que forem
salvos quiserem mudar de idéia
depois, é só mudar esta chavezinha aqui, de "oxigênio" para
"monóxido de carbono".
Todos riem, claro, mas todos
acabam indo embora. Porque as
coisas têm fim -e mesmo a visita
a um equipamento interessantíssimo, em algum momento, e às
vezes de forma súbita, termina.
Há um instante, portanto, em que
ele fica sozinho. No estande de exposições, ele fica sozinho. Reina
então um silêncio sepulcral.
Ele olha para o seu aparelho, o
aparelho no qual trabalhou tanto
tempo, e ao qual dedica muito
afeto. Mas, neste momento, não é
afeto o que ele sente. É outra coisa, uma estranha sensação. É como se a máquina o convidasse:
vem, amigo, senta aqui, coloca esta máscara, prova o meu monóxido de carbono e vê como é doce
acabar com os sofrimentos desta
vida.
Uma atração quase irresistível
o empurra para a máquina. Ele
tem de mobilizar todas as suas
forças para dela escapar. E então,
ainda suando frio, e sem olhar
para trás, deixa o recinto. Vai a
um bar, beber alguma coisa. Enquanto está saindo, as luzes se
apagam. Ele prossegue, porém.
Assobiando no escuro.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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