São Paulo, sábado, 27 de abril de 2002

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LETRAS JURÍDICAS

Direito e política nas eleições francesas

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Tratar das eleições francesas numa coluna dedicada a assuntos jurídicos deve parecer estranho ao leitor. O segundo turno está por ser disputado entre um candidato conservador, o atual presidente, Jacques Chirac, e o ultra-conservador Jean Marie Le Pen, que parece ter provocado reações de repulsa no eleitorado. A repercussão planetária de espanto é, porém, a mais natural, em face de sua predominante conotação histórica, pois foi na França que se consolidou, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, a primeira formulação ordenada das garantias jurídicas atribuídas aos cidadãos, em moldes que depois foram incorporados à maior parte dos ordenamentos jurídicos. Logo, as eleições compõem assunto a considerar.
Memórias assustadoras voltam à discussão. A partir da Primeira Guerra Mundial, no século 20, cristalizaram-se, na Europa, os regimes do nacional-socialismo alemão, com Adolf Hitler, e do fascismo italiano, com Benito Mussolini, contrapostos ao comunismo submetido a Josef Stálin. Esquerda e direita, na bipartição clássica das tendências políticas, sustentaram-se, nos casos citados, graças ao severo e implacável controle de toda a sociedade por organismos policiais e militares, que abateram duramente todas as oposições, aí incluídas até mesmo as imaginárias.
O povo francês tem todo o direito de escolher quem lhe aprouver e, se preferir Le Pen, terá feito sua opção. Considerando, contudo, que o direito só resolve uma parte das questões relevantes da vida, devemos temer os regimes totalitários, que, uma vez instalados, logo intervêm na legislação, cerceando a liberdade. No século 20 o Brasil viveu dois períodos dessa espécie: no Estado Novo, a partir de 1937, e com os governos militares, a contar de 1964. Em nosso país, na União Soviética, na Alemanha e na Itália, o direito continuou a parecer o mesmo, mas a realidade sociopolítica subjacente foi a do desrespeito das garantias fundamentais. Essa é a aparente ameaça de Le Pen.
O Brasil é um Estado Democrático de Direito. Assim mesmo, em maiúsculas, na definição do artigo 1º da Constituição. Integramos uma nação organizada (o Estado), cujos dirigentes são substituíveis, de tempos em tempos, pelo voto popular (democrático), segundo leis votadas pelos Poderes competentes e assim aplicadas, sob as garantias do Poder Judiciário contra qualquer violação ou ameaça de violação (de direito).
Quando a força política dominante quer sacrificar a liberdade de manifestação do pensamento dos que lhe sejam contrários, interpreta o direito a seu modo. Lança forte massa informativa sobre o povo para o convencer de que a manutenção dos detentores da força é boa. Para os romanos, na definição clássica de dois milênios atrás, dando pão e circo ao povo, as elites se preservavam. Hoje, com os meios eletrônicos de comunicação, o elemento "circo" se ampliou geometricamente. Escapa dos limites restritos em que se mostrou nos séculos precedentes.
As eleições francesas sugerem o que pode ser uma tendência universal, assim como foram significativas as escolhas de George W. Bush na potência hegemônica e a de Silvio Berlusconi na Itália. O horizonte do direito, muito próximo do horizonte da política, mostra nuvens cinzentas. Aqueles que prezam a vida com liberdade devem manter-se atentos.



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