São Paulo, segunda, 27 de abril de 1998

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OPINIÃO
O economista e a professora


SÉRGIO HADDAD

O economista Eduardo Giannetti, colunista desta Folha, em artigo recente, contou-nos sobre um encontro seu com um senhor de aparência humilde e jeito acanhado, que o abordou apontando uma placa em um canteiro de obras, solicitando-lhe que a lesse.
Nesse processo de mediar a leitura de uma pessoa que buscava trabalho, refletiu sobre as dificuldades cotidianas de quem não sabe ler nem escrever em uma cidade como São Paulo.
Uma pessoa que não sabe ler tem de fato muito mais dificuldades de encontrar emprego, de permanecer nele, de se reciclar. Em uma conjuntura de crescente desemprego, diminuição de postos de trabalho e mudança no perfil da qualificação da força de trabalho, saber ler e escrever faz diferença.
Giannetti, que saíra para passear depois de ter cumprido suas obrigações de trabalho, passou a sentir remorso por não ter podido ajudar mais aquele homem. Inicialmente, sentiu-se culpado. Depois, a força da razão colocou-o em outro rumo: afinal, seus ombros não poderiam suportar os 20 milhões de analfabetos do nosso país.
No mesmo dia da publicação do artigo, estreava nas telas brasileiras a professora aposentada Dora, escrevente de cartas de "Central do Brasil". No filme, Dora faz a mediação entre os que não sabem ler e escrever e o sonho, a imaginação, a saudade, o desejo.
A professora escreve as cartas, recebe o dinheiro e não as envia. No entanto, ao longo do filme, muda seu comportamento para o de solidariedade com Josué, um menino que procura o pai.
Dora termina o filme tomada pela emoção da separação de Josué. Giannetti termina o seu artigo perguntando: se o ensino básico de qualidade é a resposta unânime, qual seria então a questão?
A questão é que a oferta pública de educação básica de qualidade é insuficiente se não for dirigida a todos. A prioridade para o ensino fundamental das crianças não pode se transformar em exclusividade. Os jovens e adultos com pouca ou nenhuma escolarização vêm sendo abandonados pelas políticas públicas, restando-lhes a filantropia, a fraternidade, as empresas, o voluntarismo dos homens e mulheres de boa vontade.
O envolvimento da sociedade civil e do capital com os temas educacionais é fundamental, porém insuficiente. Eles ajudam o Estado a realizar sua tarefa; mas, ao se propor a fazer educação escolar, não atingem todos e correm risco de estar muito mais voltados para seus interesses privados do que para o necessário sentido público.
Não há exemplo na história da humanidade em que o analfabetismo tenha sido superado sem uma política pública de qualidade. Só com ela será possível não se emocionar com os olhos e os sentimentos daqueles que buscam mediadores para exercitar sua humanidade e cidadania. Que bom se, a exemplo de Giannetti, todos os economistas que definem políticas públicas pudessem dar uma voltinha depois do dever cumprido.


Sérgio Haddad, 48, é secretário-executivo da Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação e professor do programa de pós-graduação em educação da PUC-SP.



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