São Paulo, domingo, 27 de maio de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRISE DE ENERGIA

Especialistas em urbanismo, semiótica e psicanálise dizem que racionamento muda olhar sobre a cidade

Penumbra recria e empobrece São Paulo

SÉRGIO DURAN
DA REPORTAGEM LOCAL

O plano de racionamento de energia confisca do paulistano um dos seus maiores patrimônios: as luzes da cidade. Não a iluminação do interior das casas, mas a de placas, monumentos, torres de TV e edifícios.
Essa é a opinião de especialistas de três áreas diferentes -semiótica, urbanismo e psicanálise- para quem a penumbra cria uma nova (e pobre) São Paulo.
"Essa cidade é luz. É algo tão profundo", diz Maria Lúcia Santaella Braga, professora doutora do curso de semiótica da PUC (Pontifícia Universidade Católica). "Não temos praia nem belezas naturais. Essa São Paulo feita de edifícios e cimento só pode ser percebida em sua beleza à noite, por causa da iluminação, e a beleza faz falta à vida", resume.
Maria Lúcia mora em um edifício em Perdizes (zona oeste), de onde era possível avistar a avenida Paulista e suas torres de TV iluminadas. "No dia em que foram apagadas, chamei minha sobrinha para ver. A sensação era de estranhamento", conta.
Para o urbanista e historiador da USP (Universidade de São Paulo) Carlos Lemos, São Paulo sem luz se torna, para a população, uma cidade como outra qualquer do interior, e não uma das maiores metrópoles do mundo.
"Para o senso comum, os anúncios publicitários e placas iluminadas representam pujança econômica, refletem uma cidade viva, que vende, compra, constrói. O apagão faz tudo isso desaparecer subitamente", analisa.
Lemos acredita que o apagão leva a um sentimento de "tristeza e perplexidade". "Ninguém quer saber a causa, de quem deveria ter tomado conta e não tomou, o que se vê é uma cidade que vai desaparecendo", afirma o urbanista.
A professora doutora da PUC vai além em sua análise: "Sempre enxerguei essa divisão entre natural e artificial como um pouco falsa. A luz elétrica pertence à natureza das grandes cidades, é parte indispensável da paisagem, e a falta dela é algo impensável".
A luz em si, explica, não traz significado. "Isso está no que é iluminado." Mas, ao pensar a cidade como um organismo vivo, a análise se inverte: São Paulo iluminada é uma, apagada é outra.

Futuro
A psicanalista Ana Verônica Mautner abria a janela dos fundos da sua casa, na região do Pacaembu (oeste), e não gostava dos luminosos da avenida. Na última semana, a rotina mudou. As peças estavam apagadas. "Estranhei."
"A cidade levou 40 anos, mais ou menos, para ficar do jeito que está. É impossível saber como irá se comportar a população daqui para frente. Com certeza, mudará, mas ainda não deu tempo", diz.
Sobre isso, o também psicanalista Luiz Tenório Lima concorda com Ana. "O que estamos vivendo irá se refletir profundamente."
Mas a penumbra em que mergulhou a cidade durante a semana não é de todo mal, afirmam. "Desestimula o olhar para fora, mas leva o olhar para dentro. São tantos estímulos externos, tanta propaganda iluminada", considera Tenório, para quem escuridão combina com depressão.
"Convida ao mistério. Não há nada pior para quebrar o mistério do que uma enorme luz acesa", complementa Ana Verônica.
O que provavelmente ficará na memória coletiva dos paulistanos, segundo os psicanalistas, não será o apagão, e sim o esforço da população para economizar energia. "O mito da terra abençoada, sem cataclismos, grandes catástrofes, de repente, muda um pouco", considera Tenório.
"Na verdade, socialmente, eu vejo este momento de forma positiva. De repente, todos ficaram criativos e se esforçam para fazer alguma coisa. É difícil o cidadão se sentir tão imediatamente útil", diz Ana Verônica, que só ficou indignada quando soube que o relógio do banco Itaú, no alto do Conjunto Nacional, na avenida Paulista, foi desligado. "Que maldade, mas não podem fazer isso."



Texto Anterior: Educação: Servidores da educação superior terão gratificação
Próximo Texto: Saúde: Orientação ajuda a abandonar o fumo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.