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MOACYR SCLIAR
Mundo cão
A chamada "televisão de cachorro"
só existe no Brasil. O assunto foi levantado pela escritora de guias de
viagem e culinária Linda Bladholm,
num recente encontro de críticos de
gastronomia em Miami. "São fornos
onde se assam frangos em espetos; os
cachorros famintos sentam-se em
frente a eles, sonhando em provar o
conteúdo", descreveu, espantada, a
escritora norte-americana para um
público bem atento. Ilustrada (Mônica Bergamo), 22.mai.2002
Quando lhe foi anunciada a chegada da escritora norte-americana, o gerente da
agência de viagens que deveria
recepcioná-la ficou muito preocupado. Chamou seu assistente: trata-se de uma visita muito especial, disse, porque essa senhora é
especializada em guias de culinária.
- Seria bom mostrar-lhe alguma
coisa nesta área. Mas uma coisa
inédita, que ela possa contar ao
público quando voltar.
O assistente, um jovem competente e ambicioso, garantiu ao
chefe que resolveria o problema.
Naquela mesma tarde bolou um
plano. Adotadas as providências,
preparou-se para receber a escritora.
Que chegou no dia seguinte. Ele
foi buscá-la no hotel e propôs que
dessem uma volta pelos arredores, enquanto conversavam. Ela
aceitou. Foram andando, até que
chegaram a um ponto de venda
de frango assado. Ali estavam,
nos espetos giratórios, 15 ou 20
frangos de tentadora aparência.
E, sentados na calçada, 12 cachorros -três fileiras, com quatro
cães cada-, todos a mirarem fixamente os frangos. A americana
ficou encantada. O rapaz explicou-lhe então que aquilo era um
espetáculo habitual nas cidades
brasileiras; a uma determinada
hora, os cães do bairro reuniam-se e iam, em conjunto, apreciar o
espetáculo dos frangos serem assados.
- Como se fosse televisão -lembrou a escritora.
- Exatamente. E o público também varia, como na televisão.
Frango assado atrai muitos espectadores, como a senhora está
vendo, mas churrasco é melhor
ainda. Aqui nós temos 12 cães;
com churrasco seriam talvez 80.
Pico de audiência.
A visitante tomava nota de tudo, interessadíssima. Fotografou
os cães e declarou que só aquilo
valia a viagem ao Brasil: ela já tinha muito sobre o que contar.
O gerente da agência de viagens
cumprimentou o assistente pela
bem bolada idéia e pediu detalhes. O rapaz explicou que contara com a ajuda de um amigo, treinador de cachorros: ele se encarregara de reunir os bichos e mantê-los ali, sentados diante do forno, com ar sonhador.
Confessou que em certo momento pensara em usar pivetes
famintos para o mesmo fim. Mas
desistiu. Se um dos garotos não se
contivesse e roubasse um frango,
ou a bolsa da visitante, o espetáculo estaria irremediavelmente
arruinado.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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