São Paulo, segunda-feira, 27 de maio de 2002

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MOACYR SCLIAR

Mundo cão

A chamada "televisão de cachorro" só existe no Brasil. O assunto foi levantado pela escritora de guias de viagem e culinária Linda Bladholm, num recente encontro de críticos de gastronomia em Miami. "São fornos onde se assam frangos em espetos; os cachorros famintos sentam-se em frente a eles, sonhando em provar o conteúdo", descreveu, espantada, a escritora norte-americana para um público bem atento. Ilustrada (Mônica Bergamo), 22.mai.2002

Quando lhe foi anunciada a chegada da escritora norte-americana, o gerente da agência de viagens que deveria recepcioná-la ficou muito preocupado. Chamou seu assistente: trata-se de uma visita muito especial, disse, porque essa senhora é especializada em guias de culinária.
- Seria bom mostrar-lhe alguma coisa nesta área. Mas uma coisa inédita, que ela possa contar ao público quando voltar.
O assistente, um jovem competente e ambicioso, garantiu ao chefe que resolveria o problema. Naquela mesma tarde bolou um plano. Adotadas as providências, preparou-se para receber a escritora.
Que chegou no dia seguinte. Ele foi buscá-la no hotel e propôs que dessem uma volta pelos arredores, enquanto conversavam. Ela aceitou. Foram andando, até que chegaram a um ponto de venda de frango assado. Ali estavam, nos espetos giratórios, 15 ou 20 frangos de tentadora aparência. E, sentados na calçada, 12 cachorros -três fileiras, com quatro cães cada-, todos a mirarem fixamente os frangos. A americana ficou encantada. O rapaz explicou-lhe então que aquilo era um espetáculo habitual nas cidades brasileiras; a uma determinada hora, os cães do bairro reuniam-se e iam, em conjunto, apreciar o espetáculo dos frangos serem assados.
- Como se fosse televisão -lembrou a escritora.
- Exatamente. E o público também varia, como na televisão. Frango assado atrai muitos espectadores, como a senhora está vendo, mas churrasco é melhor ainda. Aqui nós temos 12 cães; com churrasco seriam talvez 80. Pico de audiência.
A visitante tomava nota de tudo, interessadíssima. Fotografou os cães e declarou que só aquilo valia a viagem ao Brasil: ela já tinha muito sobre o que contar.
O gerente da agência de viagens cumprimentou o assistente pela bem bolada idéia e pediu detalhes. O rapaz explicou que contara com a ajuda de um amigo, treinador de cachorros: ele se encarregara de reunir os bichos e mantê-los ali, sentados diante do forno, com ar sonhador.
Confessou que em certo momento pensara em usar pivetes famintos para o mesmo fim. Mas desistiu. Se um dos garotos não se contivesse e roubasse um frango, ou a bolsa da visitante, o espetáculo estaria irremediavelmente arruinado.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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