São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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SAÚDE

Política de desinternação de pacientes com problemas mentais esbarra na falta de serviços de apoio e na resistência de famílias

Sem estrutura, reforma psiquiátrica atrasa

FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Depois de 45 anos de internação em um hospital psiquiátrico, João Teixeira de Melo, 71, voltou a viver com a família. É um "gran finale" para o movimento de reforma psiquiátrica brasileiro, inspirado no italiano, e que há mais de 30 anos luta pelo fim do isolamento de doentes em grandes hospitais. Mas Melo e tantos outros precisam de muito mais para reconstruir as suas vidas.
Faltam serviços e políticas de reinserção ao convívio social, falta auxílio para buscar um trabalho, falta até remédio, transporte em caso de crise, lugar para internar quando preciso. E, principalmente, famílias com estrutura para conviver com seus doentes.
A reforma, ao pregar a internação só quando realmente necessária, deu visibilidade a algo "que antes era opaco", como afirma Paulo Amarante, 51, coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro, principal centro de estudos de políticas públicas em saúde mental do país. "Você não via as pessoas no modelo manicomial", afirma.
A partir da promulgação da lei da reforma, em 2001, há a incorporação oficial às políticas públicas do princípio da internação como último recurso. De 2000 até maio último, 12 mil leitos foram extintos. Também é intensificada a criação de centros comunitários, como os CAPs (Centros de Atenção Psicossocial). Agora os pacientes são vistos, estão a reclamar por assistência. Mas o número de centros não dá conta dos doentes: são 527, quando o próprio Ministério da Saúde admite que seriam necessários 1.100.
Das 2.000 pessoas que deveriam ser atendidas até o fim de 2003 pelo programa federal De Volta Para Casa, que dá R$ 240 a quem deixou o hospital psiquiátrico, só 472 foram beneficiadas até maio deste ano. O governo reviu as metas.
"A reforma passa mais por políticas inclusivas para o doente, de trabalho, educação, do que mudanças técnicas, como a criação de CAPs", afirma ainda Amarante, autor de "Loucos pela Vida", um dos principais livros sobre o movimento da reforma.
Portadores de transtornos psiquiátricos não conquistaram ainda nada comparável aos que sofrem de outras doenças, diz o coordenador, citando os acessos adaptados a deficientes físicos nos metrôs e ônibus e a inclusão de portadores de síndrome de Down em classes de alunos normais.
"A proposta da reforma é uma carta de boas intenções. Tem nosso apoio no sentido de acabar com os grandes asilos, valorizar o tratamento perto de onde o paciente vive. Mas o que se vê é muito mais uma preocupação em destruir o modelo anterior do que construir", diz o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Marco Antonio Alves Brasil, 54. "Não se substitui o hospital só por CAPs", continua.

Improvisando
Na periferia da zona sul de São Paulo, Claudionor Abronzo, 34, portador de esquizofrenia, diz não saber o que fazer.
"Ficar parado é muito ruim. Não desejo nem para cachorro. O trabalho é digno do homem. Sem o trabalho, você é lixo", afirma.
Abronzo, que já passou por algumas internações, gosta de escrever, de computadores. Cleuza, a irmã que cuida dele há 20 anos, pergunta o que é o CAPs, se ele pode encaminhar ao trabalho -um dos princípios é justamente esse, que sirva de "ponte" para a vida em comunidade.
Abronzo passa o dia "de lá para cá", como diz a irmã. Ainda não acertou o remédio. Nem sempre quer tomar. Em uma das crises, sem ter um serviço especial para chamar, a irmã recorreu à polícia quando o irmão trancou-se no lugar em que tinha escondido as facas da casa. Recentemente, impediu uma nova internação, única solução dada pelos médicos do hospital que fez o atendimento de urgência.
"O que precisa é conjunto de coisas: trabalho, terapia. Eu converso muito com ele. Mas às vezes me sinto sufocada", diz a irmã.
Ainda sem a esperada rede de proteção, a família de Melo, o portador de esquizofrenia que passou a maior parte da vida no complexo hospital do Juquery, em Franco da Rocha (Grande São Paulo), fez o melhor que pôde para recebê-lo, depois de um intenso trabalho de convencimento da equipe do hospital.
Os remédios foram garantidos pela unidade, já que a falta deles costuma ser um dos principais temores das famílias. Mas, para acolher o novo agregado, o jeito foi improvisar.
Num terreno pequeno, em que vivem 13 pessoas em duas casas de dois cômodos, só havia espaço para outra cama na cozinha, ao lado da pia. Para garantir a alimentação básica do bebê que vive na casa, bisneto da irmã de Melo, os adultos raramente tomam leite.
As duas casas ficam no fim de uma escada de terra, que Melo só sobe e desce com auxílio. Mas "seu João", como é chamado por parte dos parentes, pouco sai e interage com os que estão a sua volta. Fica no sol, no quintal. "É estreito", afirma. Nervoso, queria saber se poderia sair do Juquery quando foi se encontrar com a reportagem no local.
"Vamos para casa agora, seu João", dizia o feirante Luiz Carlos Alexandre Rosa, 43, genro da irmã de Melo, responsável pelo barbear do paciente, pelos cigarros e pelas frutas de que ele gosta.


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