|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
SAÚDE
Política de desinternação de pacientes com problemas mentais esbarra na falta de serviços de apoio e na resistência de famílias
Sem estrutura, reforma psiquiátrica atrasa
FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL
Depois de 45 anos de internação
em um hospital psiquiátrico, João
Teixeira de Melo, 71, voltou a viver com a família. É um "gran finale" para o movimento de reforma psiquiátrica brasileiro, inspirado no italiano, e que há mais de
30 anos luta pelo fim do isolamento de doentes em grandes hospitais. Mas Melo e tantos outros
precisam de muito mais para reconstruir as suas vidas.
Faltam serviços e políticas de
reinserção ao convívio social, falta
auxílio para buscar um trabalho,
falta até remédio, transporte em
caso de crise, lugar para internar
quando preciso. E, principalmente, famílias com estrutura para
conviver com seus doentes.
A reforma, ao pregar a internação só quando realmente necessária, deu visibilidade a algo "que
antes era opaco", como afirma
Paulo Amarante, 51, coordenador
do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz),
no Rio de Janeiro, principal centro de estudos de políticas públicas em saúde mental do país. "Você não via as pessoas no modelo
manicomial", afirma.
A partir da promulgação da lei
da reforma, em 2001, há a incorporação oficial às políticas públicas do princípio da internação como último recurso. De 2000 até
maio último, 12 mil leitos foram
extintos. Também é intensificada
a criação de centros comunitários, como os CAPs (Centros de
Atenção Psicossocial). Agora os
pacientes são vistos, estão a reclamar por assistência. Mas o número de centros não dá conta dos
doentes: são 527, quando o próprio Ministério da Saúde admite
que seriam necessários 1.100.
Das 2.000 pessoas que deveriam
ser atendidas até o fim de 2003 pelo programa federal De Volta Para
Casa, que dá R$ 240 a quem deixou o hospital psiquiátrico, só 472
foram beneficiadas até maio deste
ano. O governo reviu as metas.
"A reforma passa mais por políticas inclusivas para o doente, de
trabalho, educação, do que mudanças técnicas, como a criação
de CAPs", afirma ainda Amarante, autor de "Loucos pela Vida",
um dos principais livros sobre o
movimento da reforma.
Portadores de transtornos psiquiátricos não conquistaram ainda nada comparável aos que sofrem de outras doenças, diz o
coordenador, citando os acessos
adaptados a deficientes físicos nos
metrôs e ônibus e a inclusão de
portadores de síndrome de Down
em classes de alunos normais.
"A proposta da reforma é uma
carta de boas intenções. Tem nosso apoio no sentido de acabar
com os grandes asilos, valorizar o
tratamento perto de onde o paciente vive. Mas o que se vê é muito mais uma preocupação em
destruir o modelo anterior do que
construir", diz o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria,
Marco Antonio Alves Brasil, 54.
"Não se substitui o hospital só por
CAPs", continua.
Improvisando
Na periferia da zona sul de São
Paulo, Claudionor Abronzo, 34,
portador de esquizofrenia, diz
não saber o que fazer.
"Ficar parado é muito ruim.
Não desejo nem para cachorro. O
trabalho é digno do homem. Sem
o trabalho, você é lixo", afirma.
Abronzo, que já passou por algumas internações, gosta de escrever, de computadores. Cleuza,
a irmã que cuida dele há 20 anos,
pergunta o que é o CAPs, se ele
pode encaminhar ao trabalho
-um dos princípios é justamente
esse, que sirva de "ponte" para a
vida em comunidade.
Abronzo passa o dia "de lá para
cá", como diz a irmã. Ainda não
acertou o remédio. Nem sempre
quer tomar. Em uma das crises,
sem ter um serviço especial para
chamar, a irmã recorreu à polícia
quando o irmão trancou-se no lugar em que tinha escondido as facas da casa. Recentemente, impediu uma nova internação, única
solução dada pelos médicos do
hospital que fez o atendimento de
urgência.
"O que precisa é conjunto de
coisas: trabalho, terapia. Eu converso muito com ele. Mas às vezes
me sinto sufocada", diz a irmã.
Ainda sem a esperada rede de
proteção, a família de Melo, o portador de esquizofrenia que passou
a maior parte da vida no complexo hospital do Juquery, em Franco da Rocha (Grande São Paulo),
fez o melhor que pôde para recebê-lo, depois de um intenso trabalho de convencimento da equipe
do hospital.
Os remédios foram garantidos
pela unidade, já que a falta deles
costuma ser um dos principais temores das famílias. Mas, para
acolher o novo agregado, o jeito
foi improvisar.
Num terreno pequeno, em que
vivem 13 pessoas em duas casas
de dois cômodos, só havia espaço
para outra cama na cozinha, ao lado da pia. Para garantir a alimentação básica do bebê que vive na
casa, bisneto da irmã de Melo, os
adultos raramente tomam leite.
As duas casas ficam no fim de
uma escada de terra, que Melo só
sobe e desce com auxílio. Mas
"seu João", como é chamado por
parte dos parentes, pouco sai e interage com os que estão a sua volta. Fica no sol, no quintal. "É estreito", afirma. Nervoso, queria
saber se poderia sair do Juquery
quando foi se encontrar com a reportagem no local.
"Vamos para casa agora, seu
João", dizia o feirante Luiz Carlos
Alexandre Rosa, 43, genro da irmã de Melo, responsável pelo barbear do paciente, pelos cigarros e
pelas frutas de que ele gosta.
Texto Anterior: Transplantes: Estado do Acre doa órgão a SP Próximo Texto: Gêmeas se revêem após décadas Índice
|