|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MINHA HISTÓRIA CÍCERO OSCAR DA SILVA, 60
A situação vai melhorar
A gente foi construindo aos pouquinhos e entregando para os filhos Terminei a última casa e entreguei na maior felicidade Todo mundo morava lá perto do rio, de mim e da minha mulher Mas aí veio a água e levou tudo embora
FÁBIO GUIBU
ENVIADO ESPECIAL A
UNIÃO DOS PALMARES (AL)
O meu prazer era trabalhar
para não deixar os filhos desamparados. Queria que tivessem mais do que tive.
Passei 30 anos juntando
dinheirinho, construindo
aos poucos as casinhas para
meus filhos que moram aqui
em União dos Palmares.
Tive 28 filhos nesta vida,
mas só dez viveram. Cinco foram embora e se ajeitaram
por aí. Os outros cinco ficaram aqui na cidade. Era para
eles que queria dar as casas.
Para eles não pagarem aluguel e poderem ganhar o
pãozinho sem tanto aperreio.
Não foi fácil fazer tudo ganhando pouco. Tinha que
gastar só aquele certo e guardar o resto. Mas a gente foi
construindo aos pouquinhos
e entregando para os filhos.
Em maio, fiz a última casa.
Achava que agora podia ficar
tranquilo. Todo mundo morava lá na rua Jatobá, perto
do rio Mundaú, de mim e da
minha mulher, a Julia Maria
[65 anos]. Mas aí veio a água
e levou tudo embora.
Todas as casas caíram.
Quer dizer, algumas até ficaram com uma ou outra parede, mas está tudo rachado, e
acho que estão condenadas.
Telhado, porta, tudo sumiu.
Lá na rua não sobrou nada.
Ainda bem que quase todo
mundo conseguiu correr.
Eu chorei muito depois daquilo. Só tive coragem de ir lá
ontem [última quinta-feira].
No ano passado, sofri um
princípio de derrame. Quase
tive um negócio quando vi
aquela desgraça toda [seus
olhos se enchem de lágrimas]. Fico lembrando que
trabalhei tanto para ter uma
vida melhor mais na frente...
SANGUE FRACO
Sou alagoano. Mas fui criado pela minha avó em Quipapá, no interior de Pernambuco. Quando eu tinha 12 anos,
ela morreu. Tive que me virar. Logo, me engracei com a
Julia e tivemos filho. Eu com
uns 12 anos, e ela com 17.
Cortei cana, limpei banana, fiz tudo quanto é coisa na
roça. A mulher também trabalhava muito e ajudava a
gente a se manter. As pessoas
diziam que eu era muito pirralho para se juntar com mulher, mas eu não ligava.
Quando fiz 19, a família dela fez a gente se casar. Casamos no papel e fomos morar
numa casa de sítio, que a minha cunhada Luiza deu.
Os filhos foram nascendo,
e os meninos ficavam aperreando muito. Então, pedi
para a Julia parar de trabalhar e só cuidar deles. A gente
teve 28 filhos, mas eles nasciam e depois morriam.
Minha mulher tinha o sangue fraco e passava para os
filhos. Eles morriam pequenos. No sítio também não tinha muita condição de comida. As crianças não tinham
trato. Pode ser isso também.
ÁGUA NO PEITO
Há uns 30 anos, saímos de
Pernambuco e viemos para
Alagoas. Passamos por algumas cidades e viemos depois
para União dos Palmares.
Aqui, continuei trabalhando de faz-tudo em uma granja [sítio], ganhando salário
mínimo. De uns tempos para
cá, fiquei doente, e agora estou recebendo benefício.
Mesmo assim, consegui
terminar a última casa e entreguei na maior felicidade.
Na sexta [dia 18], choveu forte e o rio começou a encher.
Eu olhava e achava que
não ia ter problema. De repente, começou a subir rápido. Eu fiquei desconfiado e
fui para a cozinha pegar um
relógio. Foi o tempo de voltar
e sair com a água no peito.
Não deu para salvar nada.
Foi geladeira, fogão, televisão... Tinha até computador,
meu filho. Perdi as coisinhas
mais caras. Foi tudo rio abaixo. Nas casas dos meus filhos
também não sobrou nada.
O rio já tinha enchido outras vezes, mas nunca foi assim. Enchia e baixava. A
água até entrava nas casas,
mas não provocava esse prejuízo todo, de ficar sem nada.
MUITA ZOADA
Depois da enchente, eu e a
minha mulher viemos para o
abrigo, aqui na escola [Monsenhor Clóvis Duarte de Barros, do Estado]. Só trouxemos umas roupas, um colchão, um estrado de cama.
Ficamos em um cantinho
da classe com mais nove famílias. A maioria do pessoal
sai cedo e volta à noite só para dormir. Às vezes, vêm comer e saem depois de novo.
Eu fico aqui, porque não
posso ficar andando muito
para lá e para cá. Meus filhos
ficaram lá, para proteger o
que sobrou dos ladrões. Está
tendo muito saque lá.
Aqui na escola não gosto
muito. O banheiro fica muito
longe da sala. A criançada
faz muita zoada à noite. Falta
remédio, roupa, calçado.
Comida, até que tem bastante, mas eu só como arroz,
porque tinha que ter aquela
comida certa, para evitar
doença, mas não tem.
TODOS IGUAIS
Outra coisa ruim é a ficar
tanta gente junta no mesmo
lugar. Parece uma favela. É
até pior, acho, porque tem
gente que faz as necessidades aí mesmo, nesse mato
[aponta para o quintal da escola], e depois nem limpa. Fica aí, aquela sujeirada toda.
Briga até que não tem. As
pessoas se respeitam, mas
não pode ficar muito tempo
assim, porque ninguém
aguenta. Não é fácil ficar o
tempo todo com gente desconhecida, mesmo que todo
mundo aqui esteja igual.
PENSAMENTO RUIM
Eu penso no que aconteceu o tempo todo, mas a hora
mais difícil é à noite.
Eu coloco no chão esse colchão que ganhei, deito aqui
no meu canto e fico pensando se ainda vou ter a minha
casa para morar.
Eu, velho, com essa doença, tem hora que desanimo.
Mas depois penso:
Tem que tirar esse pensamento ruim da cabeça. Tem
que confiar que a situação
ainda vai melhorar.
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Moradores começam a reconstruir suas casas Índice
|