São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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GILBERTO DIMENSTEIN
Sem limite

Antes de se empanturrar com três cartelas de calmantes, terça-feira passada, o jornalista Antônio Pimenta Neves escreveu carta às duas filhas explicando por que tentaria o suicídio.
"Cometi uma insensatez pela qual tenho de pagar", contou Pimenta, que matou pelas costas e com tiro de misericórdia Sandra Gomide, a ex-namorada.
A insensatez de Pimenta, profissional de um currículo notável e raro, abalou os jornalistas, desacostumados, exceto pela leitura dos jornais, com esse tipo de crime.
Os jornalistas estão, há muito, habituados a crises conjugais, tamanho o número de profissionais já no segundo, no terceiro ou mesmo no quarto casamento. Mas crimes passionais acontecem com os "outros", capturados nas páginas ou câmeras de TV, não por quem embala notícia.
O caso Pimenta trouxe para dentro das redações uma dimensão trágica da crise conjugal. Ainda mais por ele ter trabalhado no topo da imprensa; da Folha, passando pela Gazeta Mercantil, Banco Mundial e, enfim, O Estado de S. Paulo - nessa trilha, ele frequentou cenários como Harvard.
Esse exemplo de insensatez é, entretanto, a rotina dos assassinatos.
Quando se fala em assassinato, a população tende a imaginar o ladrão, sequestrador, marginal, traficante, crime organizado. Não é bem assim. É menos, aliás, do que se imagina.
Os chamados conflitos interpessoais (vinganças, discussões privadas, brigas nos bares, guerra entre torcidas) são as principais causas dos homicídios. São os momentos de insensatez, quando o indivíduo perde a cabeça, não mede as consequências; segundos fatais em que o revólver dispara.
Os números da insensatez e sua importância na violência urbana foram apresentados, segunda-feira passada, um dia antes daquela carta de Pimenta, na Universidade de São Paulo, pelo pesquisador Renato Sérgio Lima.
Pesquisador da Fundação Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados), Renato Lima divulgou estudo com análise dos homicídios na cidade de São Paulo em 1995 -esse tipo de dado é o que coloca o tema segurança na agenda dos candidatos à prefeitura, detonando promessas impossíveis, demagógicas ou ilusórias.
A preocupação de Renato Lima era saber até que ponto o tráfico de drogas impulsionava a criminalidade. Ele dividiu as causas em três categorias: conflitos interpessoais, crime organizado e criminalidade não-organizada (latrocínio).
Entre os crimes que tiveram os motivos claramente definidos (os demais faltavam dados por problemas de inquérito e investigação), observa-se a força dos conflitos pessoais. Nada menos que 56%.
Tradução: de cada 100 assassinos, 56 poderiam escrever cartas semelhantes à de Antônio Pimenta. Perderam a cabeça, foram guiados pelo desespero, pânico, desequilíbrio, loucura.
Dos homicídios contra mulheres, segundo a pesquisa de Renato Lima, 40% foi praticado no âmbito das relações familiares.
O crime organizado respondeu, em segundo lugar, com 23% e, em último, latrocínio, 21%.
Aquele crime que mais tememos -alguém matar depois de roubar- está em terceiro lugar.
Não significa, claro, que não seja grave. Longe disso. Significa apenas que a questão da violência é, majoritariamente, provocada pelo crime organizado e conflitos interpessoais.
Dados semelhantes foram encontrados em pesquisas americanas e indicavam que a maioria dos homicídios ocorre entre pessoas que se conhecem.
Vemos, assim, a complexidade da questão da violência que, óbvio, passa a quilômetros de distância das análises dos candidatos, a maioria deles interessada em enredar o eleitor com soluções milagrosas.
Uma política de segurança pública envolve não apenas caçar e punir criminosos, mas reduzir a tensão de uma sociedade, a ajudar na intermediação de conflitos, cultivar o diálogo. Lugares sem polícia ou Poder Judiciário tendem a estimular justiça com as próprias mãos, justamente pela falta de intermediação.
Basta dizer que, em várias cidades, experimentaram o esporte para ajudar na intermediação de conflitos. Atraíram gangues para torneios esportivos, deixando as armas de lado. Isso, somente, reduziu a taxa de violência em alguns bairros.
Sabe-se, hoje, que o lazer e o esporte se prestam a antídotos contra a violência, assim como programas realizados em escolas e apoio psicológico para percepção precoce de distúrbios -quantas vidas não seriam salvas se pudéssemos, em larga escala, detectar e ajudar pessoas com distúrbios psicológicos.
Na carta que deveria ser a despedida suicida, Antônio Pimenta explica por que se mataria -a vida tinha perdido valor.
Não tinha valor, primeiro, sem a mulher que dizia amar. E não tinha valor, depois, por ter de carregar tamanha culpa.
Estão aí as razões porque uma sociedade é engolfada pela violência. É justamente quando a vida perde valor, fazendo da morte algo banal, corriqueiro e previsível -e a violência fica sem limite.
PS- Para quem quiser mais dados, coloquei em meu site a íntegra da pesquisa de Renato Lima. Ali se vê, por exemplo, que o negro é, proporcionalmente, a maior vítima dos assassinatos. Assim como os pobres.
O endereço é www. dimenstein.com.br/
E-mail - gdimen@uol.com.br



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