São Paulo, quinta-feira, 27 de agosto de 2009
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PASQUALE CIPRO NETO "O teu sorriso no teu silêncio é as escadas..."
"O TEMPO É AINDA DE FEZES, maus poemas, alucinações e esperas..." O atualíssimo verso é de "A Flor e a Náusea", que integra o livro "A Rosa do Povo", que Carlos Drummond de Andrade escreveu na década de 40. Como uma das últimas modas no ínclito Senado é homenagear escritores, lanço minha modesta sugestão. Pensando bem, melhor deixar para lá o Senado e o cáustico verso de Drummond. Vou atravessar o oceano e trocar de poeta. Em "Hora Absurda", de Fernando Pessoa (ele mesmo, e não um de seus heterônimos), encontro estes versos, que me dizem muito à alma: "O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas... / Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso... / E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas / Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso... ". O nobre leitor certamente já percebeu que a leitura desses versos exige concentração -e, é claro, bom domínio da sintaxe e do vocabulário. Comecemos pelo segundo item e desvendemos o significado de "pandas" (de "velas pandas"): "abauladas em função do vento", "infladas", "abertas", "cheias". Naturalmente, o leitor procurará nos dicionários a forma "pando". Depois, vamos ao significado de "andas" (de "E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas..."). Diferentemente do que pode sugerir uma leitura descuidada, não se trata da segunda do singular do presente do indicativo do verbo "andar". Trata-se do plural do substantivo "anda", que significa "perna de pau" (não o indivíduo, mas a própria peça de madeira). Posto isso, caro leitor, peço-lhe que volte ao segundo parágrafo e que releia os versos de F. Pessoa. Já os releu? Percebeu a magnitude da metáfora de "O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas"? E a metáfora de "teu sorriso"? Essa talvez mereça um pequeno comentário. Comecemos pela palavra "flâmula", que, literalmente, é o diminutivo de "flama" (sinônimo de "chama"). O formato de uma flâmula (agora com o sentido de bandeirola estreita e comprida, que se usa nas embarcações, como sinalização ou adorno) reproduz justamente o que ocorre com uma pequena chama quando sofre o efeito do vento... O poeta diz que, brandas, as brisas brincam nas flâmulas (da nau que o teu silêncio é). E diz que essas flâmulas são o "teu sorriso" ("brincam nas flâmulas, teu sorriso"). Está clara a metáfora, caríssimo leitor? Passemos ao verso seguinte, que começa justamente com a retomada de "o teu sorriso" ("E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas..."). Nova metáfora, dupla desta vez, já que "o teu sorriso" agora é, a um só tempo, as escadas e as andas (as escadas para subir ao paraíso, e as andas para fingir-me mais alto). O leitor percebeu que, certamente não por acaso, Pessoa optou pelo verbo "ser" no singular em "O teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas"? As gramáticas dizem que, quando liga coisa e coisa, o verbo "ser" costuma ser conjugado no plural, se uma das coisas estiver no plural ("Sua salvação foram os livros"), mas, se a intenção é realçar o termo que está no singular... Ao optar por "é" (e não por "são", o que geraria a construção "E o teu sorriso no teu silêncio são as escadas e as andas..."), o poeta deixa clara a ênfase sobre "o teu sorriso" ("E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas com que..."). O teu sorriso no teu silêncio é mais que uma nau com velas pandas. O teu sorriso no teu silêncio é tudo. É mais do que tudo. É isso.
inculta@uol.com.br
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