São Paulo, quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

A foca, o foca e o foco


Um passeio pelo mundo das palavras não faz mal a ninguém. "Fogo" e "foco", na origem, são a mesma palavra

O TEXTO DA SEMANA passada deu o que falar. Houve uma enxurrada de mensagens dos leitores -quase todos favoráveis à idéia de que nada justifica a barbárie, seja ela expressa pelas "vias de fato", seja ela expressa por palavras.
Embalado pelo episódio com Foquinha (o hábil jogador Kerlon, do Cruzeiro), um leitor lembrou a variação de gênero e de sentido da palavra "foca". De fato, quando se fala do gracioso animal, emprega-se o artigo "a" ("Quer ver a foca ficar feliz é pôr uma bola no seu nariz" -da canção "A Foca", de Toquinho e Vinicius, incluída no antológico disco para crianças "A Arca de Noé"). Quando se fala de um jornalista incipiente, emprega-se o artigo "o" ("O foca escreveu aquela matéria sem ouvir os dois lados").
Durante as intermináveis discussões sobre o episódio Foca/Coelho, não faltou quem empregasse o trocadilho "foca/foco" ("O foco do Foca era..."). Pois era aí que eu queria chegar. De onde vêm as palavras "foco" e suas "primas", como "focalizar", "focar", "desfocado", "fogo", "fogareiro", "foguete" etc.? Não me enganei, não, caro leitor. Na verdade, "foco" e "fogo" são a mesma palavra, já que vêm de "focus" (do latim), que, entre outros significados, tem o de "fogo", "lume".
Não é preciso ir muito longe para imaginar que era com o fogo que se iluminavam os ambientes depois do ocaso. Em português, "foco" e "fogo" ganharam sentidos específicos, fato mais do que comum, visto em pares como "catar" e "captar", "aprender" e "apreender" etc. Em italiano (língua neolatina, como a nossa), "focus" só deu origem a "fuoco", que em português se traduz por "foco" ou "fogo", dependendo do caso ("mettere a fuoco", por exemplo, significa "ajustar, acertar, calibrar o foco" [de uma máquina fotográfica ou câmera]).
Como sempre digo, um passeio pela história da(s) palavra(s) não faz mal a ninguém. Se prolongarmos esse passeio pela palavra "fogo", veremos que em latim existe outra palavra para designar esse elemento. Trata-se de "ignis", de emprego erudito. Entre nós, essa raiz está presente em "ígneo" ("relativo ao fogo"), "ignívoro" ("que engole ou simula engolir fogo") etc. O artista circense que engole (ou finge que engole) fogo poderia ser chamado de "Homem ignívoro". Que tal? "Respeitável público! Com vocês, o homem ignívoro!".
Em seu memorável poema "Satélite", Bandeira se refere ao "céu plúmbeo" ("Fim de tarde. / No céu plúmbeo / A Lua baça / Paira..."). O céu plúmbeo é de chumbo ("chumbo" vem de "plumbum", do latim). Se fosse "ígneo", seria de fogo.
Se o passeio for estendido, veremos que o "-voro" de "ignívoro" é o mesmo de "carnívoro", "herbívoro" etc. Veremos também que o "ignis" de "ígneo" está presente em "ignição", palavra que se usa no meio automotivo. O sistema de ignição de um automóvel, por exemplo, nada mais é do que aquele que produz a centelha que deflagra a queima do combustível. E pensar que muita gente que trabalha com carros nem imagina por que o sistema de ignição tem esse nome...
Ainda que resulte de um episódio bárbaro como o da agressão ao Foquinha, uma viagem pelas palavras é sempre um bálsamo. É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Saiba mais: Sorteio define quem faz a prova do Enade
Próximo Texto: Trânsito: CET monitora trânsito em torno do Pacaembu no sábado
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.