São Paulo, domingo, 27 de novembro de 2005

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DIREITO DE AMAR

Desinteresse de homens e constrangimento esvaziam uso do benefício, concedido às mulheres só em 2001

Visita íntima é rara em presídio feminino

PAULO SAMPAIO
DA REVISTA DA FOLHA

Ontem, como todo último sábado do mês, foi dia de "íntima" na PFC (Penitenciária Feminina da Capital). Traduzindo o jargão: dia em que as detentas recebem os parceiros para duas horas de intimidade atrás das grades. Em qualquer prisão masculina, o cenário seria de filas e filas de mulheres esperando a vez de aplicar o cafuné no namorado, marido ou amante fixo. No presídio feminino, isso não acontece.
Os pré-requisitos para a visita íntima são os mesmos para eles & elas: provar um vínculo anterior à detenção ou ter um relacionamento estável de, no mínimo, seis meses; fazer (o casal) exames laboratoriais de salubridade e inscrever-se na lista dos habilitados. No Centro de Detenção Provisória 1, no Belenzinho, zona leste, 26% dos homens estão inscritos, o que dá 400 encontros por fim de semana; na PFC, esse índice cai para 4,8% das 680 presas, ou 32 mulheres. Mas no sábado em que a reportagem acompanhou a visita o quórum de presentes se resumiu a três homens.
Instituído em 1987, o direito à visita íntima nas cadeias masculinas passou a vigorar logo em seguida; na penitenciária feminina, isso só ocorreu em 2001, após anos de insistência de grupos de defesa femininos, entre outros, da comissão da mulher advogada, na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e da mulher encarcerada.
No começo, uma das justificativas para a demora era o temor de que as visitas alimentassem a epidemia de Aids -argumento difícil de entender, já que há mais chance de o homem contagiar a mulher do que o oposto.
Na busca das razões reais, o número bem inferior de presidiárias é o primeiro fator a chamar a atenção. As mulheres somam cerca de 5% do sistema penitenciário, uma minoria com capacidade de pressão bem menor que a deles. Suas rebeliões são mais raras e muito menos sangrentas.
"Nas duas últimas rebeliões femininas, havia apenas quatro pessoas na porta da penitenciária no dia seguinte. Na masculina, todos sabem o que acontece: as mulheres ficam em massa na frente dos presídios, levam os filhos, se rebelam também", relata Heidi Cernaka, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária Feminina.
O primeiro motivo pelo qual a íntima no presídio feminino não "pegou" confirma um (pre)conceito de gênero: "Maridos não são solidários, como mulheres. Eles as abandonam muito mais facilmente. A maior parte que vem visitar as presas são mães, irmãs, filhos", declara a diretora Maria da Penha Risola Dias, 62, casada, mãe de dois filhos e 33 anos de trabalho na penitenciária.

Questão de gênero
Heidi, da Pastoral, tem uma explicação para a diferença. "É natural da mulher cuidar, fazer tudo para manter a família. Como ficam com os filhos quando os maridos são presos, manter o vínculo com o pai deles é muito importante. Um dos principais propósitos da visita íntima é justamente esse, manter a família."
Os homens, em geral, não ficam com as crianças e não fazem tanto esforço para conservar o relacionamento com a mãe delas. "Eles não gostam de se expor, de se submeter à revista necessária, aos exames. Muitos arrumam outras mulheres enquanto a oficial está presa. Não é só o sexo, é cozinhar, lavar, cuidar da casa."
A segunda razão do relativo fracasso da íntima feminina é, em parte, decorrência da primeira -de acordo com a diretora Penha. "A falta de solidariedade dos maridos acarreta uma carência afetiva muito grande e, num ambiente exclusivamente feminino, elas acabam se envolvendo umas com as outras." Ela estima que na PFC bem mais da metade das detentas "é" ou "está" homossexual.
Para evitar confusão, inclusive, a administração da cadeia admite remanejamentos na disposição original das detentas nas celas. Normalmente, as "casadas" dormem em uma mesma cela, um espaço de 6,5 m2.
Adriana Nicoleti de Amorim, 31, condenada a 26 anos por "vários assaltos", e Rosângela Santos, 36, 20 anos de pena por latrocínio (roubo seguido de morte), formam um casal típico naqueles domínios: as duas se conheceram ali há 12 anos e se apaixonaram. Adriana chegou a ser transferida para o Butantã, em regime semi-aberto, mas voltou para ficar com "Biro", apelido de Rosângela: as duas comemoraram recentemente o aniversário de casamento.
"Eu prefiro mil vezes ficar aqui na cela com o Biro do que receber alguém uma vez por mês, por duas horas, em uma cama fria de cimento. Minha íntima é permanente", diz Adriana.
Mas a aceitação dos pares homossexuais só vale para quem está dentro. "Se a detenta tem uma companheira fora, até pode receber a visita dela, mas não na íntima. Não podemos permitir tudo, senão vira bordel", diz a diretora.
Há ainda uma terceira razão para que parte das detentas rejeite a visita íntima: o constrangimento de atravessar pavilhões na vista de outras presas, para ir ao encontro do parceiro. "Fica um guarda na porta, todo mundo sabe que você está indo transar e ainda tem o raio de uma campainha que eles tocam para avisar que o tempo acabou. É o fim da picada", queixa-se Maria Cristina Passos, 38, 25 anos de casada, seis filhos.
Seu marido,que é gerente de supermercado, nunca a abandonou: "Ele não é nem louco", brinca. "Claro que deve ter outra, porque ele é homem, mas continua morando lá em casa."
Apesar de resistir à íntima, a presidiária diz que seu último filho foi concebido na cadeia. Não na PFC, mas na Dacar (presídio para presas ainda não condenadas), onde as detentas recebem os parceiros nas próprias celas. Ali, 20 presas se revezam em oito camas. E a tal privacidade?
"A gente faz uma cortininha com o lençol no beliche e liga o som e a TV no volume máximo. Ninguém ouve nada, e todo mundo fica muito mais tempo", conta Cristina, antes de confessar que engravidou "de propósito": "Se não fosse o bebê não ia conseguir "tirar cadeia'", acredita ela, cujo filho tem agora um ano e meio. A presa grávida é transferida para uma penitenciária em que pode dar à luz e recebe tratamento especial durante quatro meses.

Terror da sineta
Uma das poucas a aproveitar plenamente a íntima é Rosângela Legramandi, que cumpre pena por formação de quadrilha e porte de arma. Ela diz que o constrangimento de passar pelas colegas detentas antes e depois de transar até existe, mas não é intransponível. "É meio complicado, o guarda bate a sineta, e você sai do quarto com um cobertor na mão, o cabelo meio desgrenhado, a cara amassada", conta, rindo.
Pior do que passar amassada pelo guarda, diz, é ser multada por beijar o "gato" na frente do policial. "Dá dez dias de castigo." Casada quatro vezes, três filhos de dois pais diferentes (18, 14 e 8 anos), Rosângela não recebe nenhum dos ex-maridos, e sim um namorado com o qual teve um relacionamento de um ano e três meses "na rua", antes de ser presa.
"Ele tem 25 anos, é motoboy, trabalhador, todo certinho, me mandou uma carta depois de três anos na prisão." Segundo ela, o "certinho" a procurou porque acredita que ela está arrependida.
Cabelos longos, ondulados, tingidos de um tom avermelhado, 1,66 m de altura, 90 kg, risada exuberante, Rosângela faz o tipo bonachona. "Meu motoboy é um gato: tem 1,98 m, cavanhaque, luzes no cabelos, usa óculos. É o primeiro a chegar aqui; às 5h30 ele já está esperando para entrar. E não vem só em dia de íntima, não, vem todo fim de semana", conta, orgulhosa, ela que prefere preservar a família a recebê-los ali, já que "ninguém é do crime".
Qual o segredo do sucesso de uma das raras contempladas coma presença fiel do parceiro? "Transando uma vez só por mês, quem não é fiel?", ela pergunta, soltando mais uma gargalhada. Para visitá-la, ele teve de provar que mantém uma relação estável com a presidiária, reconhecer firma no cartório, e os dois passaram por exames médicos. "Se eu resolver mudar o parceiro, tenho que tirar o nome desse da lista e esperar seis meses", afirma.
É importante abrir um parêntese para dizer que os parceiros citados foram insistentemente procurados, mas não quiseram falar. "O problema é que alguns estão foragidos da polícia", acredita uma das encarregadas do presídio.


Colaborou Mayra Stachuk

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