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São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 2003

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Miss não tem o direito a ter individualidade

DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Depois de vários anos caidaço, o concurso de miss Brasil decidiu se glamourizar, começando pela escolha do júri, que só tinha famosos: de d. Mariza Alencar, mulher do vice-presidente, a José Simão, colunista da Folha, passando por Glorinha Kalil, Costanza Pascolato, Celine Imbert, Duda Molina, Bob Wolfenson e Alexandre Herchcovitch, entre outros.
Misses são seres de outro planeta, que só olham para o espelho e para as câmeras fotográficas, só falam com jornalistas e são, todas, sim-pa-ti-cís-si-mas. Daí a vontade de entrar no camarim, para ver como elas são de verdade. Pois fique sabendo: lá dentro elas são iguaizinhas.
Chegaram de cabeça e cara lavada, jeans, camiseta, e salto altíssimo, tipo uns 15 centímetros (tomam banho de sapato, claro).
Ali, onde as mães são proibidas de entrar, começam a cuidar da maquiagem e dos cabelos, e não têm o direito a dar um só palpite. A temperatura ambiente era a de um microondas ligado na potência máxima, e além disso cruzavam no ar, em todas as direções, lufadas de ar quentíssimo dos secadores; mas elas não se queixavam nem transpiravam -o regulamento não deve permitir.
É incrível como moças vindas de todas as regiões do país podem ser tão parecidas. A maioria delas estuda administração de empresas, medicina, jornalismo, sociologia ou direito e tem como hobby ler, ir à praia, nadar, dançar, desfilar, ouvir música e fazer ginástica. Suas admirações vão de Ayrton Senna a Nelson Mandella, passando por Jô Soares, Silvio Santos, Betinho, o papa, d. Zilda Arns e Deus, mas todas pretendem trabalhar na televisão como apresentadoras ou serem modelo. Outra coisa: to-das têm cabelo liso e longo. Não é que elas tenham: têm que ter. Se o cabelo for crespo, é alisado, e, se for curto, é implantado.
Aí, chegou a hora do concurso propriamente dito: primeiro o desfile em trajes típicos, depois com roupa de gala e, para finalizar, de maiô. O júri (do qual eu fazia parte) tinha que escolher dez em cada quesito.
Começou o problema: a gente passa a vida achando que mulher bonita é Gisele Bündchen, que pesa 50 quilos, tem perna fina e quadril estreitinho, que maravilhosa é Kate Moss, esquálida, com cara de famélica, todas fazendo cara de quem tem atitude, e de repente é preciso escolher dez misses sorridentes, com a-que-la saúde e coxa grossa; logo coxa grossa, coisa imperdoável atualmente, no mundo da beleza. Instala-se um problema filosófico: o que é a beleza, afinal? E como não havia tempo para discutir o problema, votamos do jeito que foi possível -bem, eu acho.
Perguntas, já redigidas, foram distribuídas a alguns membros do júri, para serem feitas às misses; quando um dos jurados disse que ia perguntar uma coisa diferente, alguém avisou: "Não faça isso, porque elas já têm as respostas prontas". Miss não tem o direito a ter individualidade nem personalidade, nem por fora nem por dentro.
Por isso, foi um alívio quando a miss Brasil 2002, com sua capa vermelha debruada de arminho tipo Papai Noel, disse, na despedida de seu reinado: "Foi muito bom, e eu ajudei muito a mim".
Palavras que certamente não estavam no script e que foram as únicas verdadeiras da noite inteira.


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