São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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SEGURANÇA

Colaboradores eram infiltrados em quadrilhas; ações de grupo de inteligência da polícia resultaram em 22 mortes

Sem apoio da lei, PM recruta presos para operações de combate ao PCC

ALESSANDRO SILVA
GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL

A propaganda oficial dos maiores ""sucessos" contra o crime em São Paulo esconde, na verdade, a ação de um grupo da Polícia Militar que agiu à margem da lei ao recrutar presos condenados para infiltrá-los em quadrilhas. As ações desse setor, suspeito de prática de tortura e acusado de ter ameaçado um juiz, impressiona pelo número de mortes que reuniu em tão pouco tempo.
A rede clandestina de inteligência envolveu cerca de 40 policiais militares do Gradi (Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância), subordinados diretamente ao gabinete do secretário da Segurança Pública. Primeiro, na gestão do promotor Marco Vinicio Petrelluzi, que saiu em janeiro. Depois, na do atual, Saulo de Castro Abreu Filho.
As informações desse órgão renderam três grandes operações à polícia, incluindo a que terminou com a morte de 12 supostos integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital), em março, na região de Sorocaba. Em oito meses, o Gradi planejou ações que somam 22 mortes e sete presos.
O nome da unidade nada tem a ver com a função que desempenhou: não investigavam casos de racismo ou discriminação, mas quadrilhas supostamente ligadas à organização criminosa -PCC.
Nos corredores do Judiciário, há quem compare a unidade com o temido ""esquadrão da morte" -o grupo de policiais que, na década de 70, assassinava pessoas que julgava serem criminosas. Os homens do Gradi não foram afastados do serviço.
Em seu período mais ativo, de julho de 2001 a abril deste ano, esses agentes vigiaram, com ordem judicial, o telefone de mais de cem pessoas supostamente ligadas a crimes. Mas não era esse o principal método de investigação.
O serviço reservado da PM selecionou ao menos cinco presos em penitenciárias, inimigos do PCC ou jurados de morte nesses locais, para compor um grupo clandestino de infiltração em outras áreas. Usaram essas pessoas para chegar a criminosos, em troca de promessas de transferência, segundo um relatório do reservado, e até de dinheiro, como parentes disseram à Folha.
Os policiais precisavam dos presos porque o PCC funciona assim: um grupo planeja a ação, ""contrata" mão-de-obra e obtém armas de aliados para a operação.
Parece filme, mas as ações da PM constam de documentos reservados da corporação, aos quais a Folha teve acesso. Os "agentes" recrutados, alguns com 40 anos de prisão para cumprir, passaram a ter carros do Gradi -eles dirigiam-, celulares, podiam dormir no quartel, visitar familiares e até frequentar festas.
Tinham tanta liberdade que dois desses condenados fugiram em março, usando o próprio carro do Gradi -um Celta ano 2000, placa DDM-7849. No boletim de ocorrência registrado no 85º DP (Jardim Mirna, zona sul de São Paulo), a versão dos policiais foi a de que o veículo havia sido furtado em um estacionamento.
Os dois foragidos, cujos nomes a Folha não revela por questões de segurança, foram recapturados um dia depois com a ajuda de dois outros assaltantes recrutados pelo Gradi. A direção do Centro de Observação Criminológica, no Carandiru, surpreendeu-se com o estado em que ambos retornaram: tinham hematomas, um estava com o fêmur quebrado, e outro, com suspeita de fratura.
O depoimento deles, que acusam os PMs do Gradi de tortura, revela com detalhes o funcionamento da principal máquina de inteligência policial do Estado.
Tudo corria em sigilo, com relatórios verbais e autorizações para a saída dos presos assinadas (às vezes prorrogadas por telefone) pelo juiz-corregedor de São Paulo, Octávio Augusto Machado de Barros Filho. O juiz afirma que não sabia das infiltrações e que os liberava para ""diligências".
O dicionário define a palavra, entre outros sentidos, como ""investigação", "pesquisa". É usual, diz Barros Filho, tirar presos para depoimentos, reconhecimentos. Não para introduzi-los em quadrilhas, com carros e celulares.
""Eles passaram a atuar como uma força à margem do Estado de Direito. Sem controle, sem fiscalização, sem lei", declarou o juiz-corregedor, que diz ter suspendido as autorizações de saída em abril, após a acusação de tortura.
O próprio comando da PM informou ter barrado a operação do Gradi nessa mesma época, após receber denúncia de que outro juiz havia se sentido ameaçado pelos policiais da unidade. Os agentes reivindicavam benefícios -prisão em unidade semi-aberta- para seus "recrutas".
Apesar disso, nenhuma providência foi tomada para investigar as outras ações que o grupo de inteligência praticou. Todas repletas de mistério e mortes.
Em julho do ano passado, o reservado da PM perdeu um de seus recrutas presos: Fernando Henrique Rodrigues Batista, 22, conhecido como Chacal, condenado a 11 anos de prisão por homicídio.
Chacal foi aliciado na Penitenciária de Avaré, no interior de São Paulo, pelo tenente P., oficial do reservado que investigava um resgate de 13 presos, um mês antes, liderado pelo PCC.
Um comboio da PM havia sido atacado na rodovia Castello Branco. Um PM morreu, e três ficaram feridos no tiroteio.
O preso manteve contatos telefônicos com familiares de fundadores do PCC. Teria descoberto um grupo que planejava resgatar líderes da organização e ofereceu aos pececistas quatro ""soldados" (todos policiais do reservado) e armas (pistolas e um fuzil da PM) para ajudar na missão.
Chacal morreu baleado por um soldado da corporação que ajudou na invasão da casa onde os supostos criminosos se reuniam. Outras quatro pessoas morreram. Impressiona a pontaria: 81% dos tiros foram do peito para cima. Um tinha um único tiro na cabeça, por trás, segundo laudo do IML (Instituto Médico Legal).
Baseado nessa ação, o vice-prefeito da capital, Hélio Bicudo (PT), presidente do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, quer levar o caso das 12 mortes em Sorocaba para a Comissão de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos).
No caso de Chacal, os relatórios do reservado mostram que as infiltrações tentavam atrair a quadrilha para uma chácara na Grande São Paulo, cercada pelo COE (Comando de Operações Especiais). Na operação de Sorocaba, havia pelo menos dois presos infiltrados. ""Nunca se comprovou o que eles [mortos" realmente iam fazer na cidade", afirmou Bicudo, que questiona a letalidade da ação e acredita que o Gradi ""inventou" um roubo a avião pagador para atrair a quadrilha até onde se posicionaram mais de cem PMs.
Na semana passada, o Ministério Público de São Paulo pediu a abertura de inquérito para investigar a denúncia de tortura. O procedimento do Gradi também será analisado. ""Tirar preso para fazer infiltração me parece flagrantemente ilegal", diz o promotor Rodrigo Canellas Dias, coordenador do Centro de Apoio às Promotorias Criminais do Estado.
A lei nº 9.034/95, que trata da infiltração em organizações criminosas, diz que apenas ""agentes de polícia e de inteligência" podem fazer infiltrações.
Mas o Gradi nunca precisou dessa lei. Agiu sempre sem autorização judicial. ""Toda prova obtida assim é ilícita", afirma o juiz aposentado Luiz Flávio Gomes, doutor em direito penal e autor do livro ""Crime Organizado".


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