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PASQUALE CIPRO NETO
"Porque se sujar faz bem"
O leitor certamente já viu
na televisão os comerciais
de um famoso sabão em pó que
terminam com este bordão: "Porque se sujar faz bem". Nos filmes,
crianças pintam -literalmente- e bordam. Didático-pedagógica, a peça publicitária faz a
apologia da natural relação das
crianças com a "sujeira".
Bem, o que me interessa, como
sempre, é o aspecto linguístico da
questão. O leitor habitual deste
espaço sabe que não raro analiso
frases publicitárias, muitas das
quais são inteligentes e bem arquitetadas. O leitor sabe também
que, nos grandes vestibulares, é
cada vez mais comum a exigência
da capacidade de percepção dos
mecanismos de construção e dos
efeitos de frases como a da publicidade do sabão em pó.
Vamos aos fatos, pois. Qual é o
sentido que logo se depreende da
frase em questão? Não é difícil
perceber: a uma criança faz bem
sujar-se. Mas a coisa não pára por
aí, visto que, por trás desse sentido que se percebe de imediato, há
outro, em que o "se" deixa de ser
pronome reflexivo ("se sujar" =
"sujar a si próprio") e passa a ter
valor de conjunção condicional
("se sujar" = "caso suje").
É evidente que, para que se materialize o segundo sentido, é preciso supor que o detergente em pó
esteja implícito como sujeito da
forma verbal "faz".
Alguém talvez diga que essa segunda interpretação é forçada, já
que, para que a frase de fato tivesse o segundo sentido, seria necessária a presença de duas vírgulas
("Porque, se sujar, faz bem").
Convém lembrar que, nesse tipo
de linguagem, não necessariamente se obedece às regras ortodoxas da sintaxe. A linguagem
publicitária está mais próxima da
literária do que da formal.
Duplo sentido em textos publicitários não é novidade. Quando
Curitiba completou 300 anos, fez-se na capital paranaense uma
campanha cujo objetivo era a diminuição do número de acidentes de trânsito. Uma das peças começava com estes dizeres: "Curitiba levou 300 anos para aprender a respeitar o verde". Como é
famosa a preocupação de Curitiba com o verde (que aí significa
"vegetação", "áreas verdes" etc.),
logo se pensa no sucesso que a cidade obteve na criação e na preservação de parques etc.
A surpresa vem logo a seguir. A
continuação do texto é esta:
"Agora só falta o amarelo e o vermelho". Inteligente, não? O jogo
consiste no duplo valor da palavra "verde", que passa por um
processo chamado "derivação imprópria", pelo qual se emprega
uma palavra fora de sua classe
gramatical convencional. Normalmente, "verde" é adjetivo,
mas passa a substantivo em
"aprender a respeitar o verde".
A derivação imprópria, por sinal, é o que explica a forma "redondo" na famosa frase da cerveja ("que desce redondo"). O termo
"redondo" ocupa o lugar do advérbio propriamente dito ("redondamente"). Na verdade, "redondo" atua aí como advérbio,
por isso não varia.
Veja este outro caso de derivação imprópria: "Ela é muito mulher". Nessa frase, "mulher" funciona como adjetivo. Não é à toa
que não se flexiona a palavra
"muito" (não se diz "Ela é muita
mulher"). Como se sabe, modificadores de adjetivos não variam
("Ela é muito bonita"). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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