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São Paulo, quinta-feira, 28 de agosto de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Porque se sujar faz bem"

O leitor certamente já viu na televisão os comerciais de um famoso sabão em pó que terminam com este bordão: "Porque se sujar faz bem". Nos filmes, crianças pintam -literalmente- e bordam. Didático-pedagógica, a peça publicitária faz a apologia da natural relação das crianças com a "sujeira".
Bem, o que me interessa, como sempre, é o aspecto linguístico da questão. O leitor habitual deste espaço sabe que não raro analiso frases publicitárias, muitas das quais são inteligentes e bem arquitetadas. O leitor sabe também que, nos grandes vestibulares, é cada vez mais comum a exigência da capacidade de percepção dos mecanismos de construção e dos efeitos de frases como a da publicidade do sabão em pó.
Vamos aos fatos, pois. Qual é o sentido que logo se depreende da frase em questão? Não é difícil perceber: a uma criança faz bem sujar-se. Mas a coisa não pára por aí, visto que, por trás desse sentido que se percebe de imediato, há outro, em que o "se" deixa de ser pronome reflexivo ("se sujar" = "sujar a si próprio") e passa a ter valor de conjunção condicional ("se sujar" = "caso suje").
É evidente que, para que se materialize o segundo sentido, é preciso supor que o detergente em pó esteja implícito como sujeito da forma verbal "faz".
Alguém talvez diga que essa segunda interpretação é forçada, já que, para que a frase de fato tivesse o segundo sentido, seria necessária a presença de duas vírgulas ("Porque, se sujar, faz bem"). Convém lembrar que, nesse tipo de linguagem, não necessariamente se obedece às regras ortodoxas da sintaxe. A linguagem publicitária está mais próxima da literária do que da formal.
Duplo sentido em textos publicitários não é novidade. Quando Curitiba completou 300 anos, fez-se na capital paranaense uma campanha cujo objetivo era a diminuição do número de acidentes de trânsito. Uma das peças começava com estes dizeres: "Curitiba levou 300 anos para aprender a respeitar o verde". Como é famosa a preocupação de Curitiba com o verde (que aí significa "vegetação", "áreas verdes" etc.), logo se pensa no sucesso que a cidade obteve na criação e na preservação de parques etc.
A surpresa vem logo a seguir. A continuação do texto é esta: "Agora só falta o amarelo e o vermelho". Inteligente, não? O jogo consiste no duplo valor da palavra "verde", que passa por um processo chamado "derivação imprópria", pelo qual se emprega uma palavra fora de sua classe gramatical convencional. Normalmente, "verde" é adjetivo, mas passa a substantivo em "aprender a respeitar o verde".
A derivação imprópria, por sinal, é o que explica a forma "redondo" na famosa frase da cerveja ("que desce redondo"). O termo "redondo" ocupa o lugar do advérbio propriamente dito ("redondamente"). Na verdade, "redondo" atua aí como advérbio, por isso não varia.
Veja este outro caso de derivação imprópria: "Ela é muito mulher". Nessa frase, "mulher" funciona como adjetivo. Não é à toa que não se flexiona a palavra "muito" (não se diz "Ela é muita mulher"). Como se sabe, modificadores de adjetivos não variam ("Ela é muito bonita"). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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